sábado, 21 de março de 2009

RESENHA- Bernardo Ricupero - A (re)conciliação com a tradição

A (re)conciliação com
a tradição

Francisco WEFFORT. Formação do pensamento
político brasileiro. São Paulo, Ática, 2006. 360
páginas.

Bernardo Ricupero

Formação do pensamento político brasileiro
é um ensaio. Faz parte, portanto, da tradição de
livros desse gênero que tratam de grandes temas
brasileiros. Não deixa até de haver uma certa ironia
o fato de Weffort, que teve um papel importante
na afirmação das ciências sociais brasileiras,
ter-se voltado à forma literária, que parecia ter
sido sepultada definitivamente pelas próprias ciências
sociais. Mas, mesmo antes, aquele que mais
contribuiu para que se impusesse o padrão científico
de trabalho intelectual nas ciências sociais
brasileiras, Florestan Fernandes (1987), também
sentiu a necessidade de revisitar o gênero que
anteriormente havia predominado no pensamento
social brasileiro, o que está expresso, até de
forma tensa, no subtítulo de seu último grande
trabalho: A revolução burguesa no Brasil: um
ensaio de interpretação sociológica.
Trajetórias como essas indicam a consolidação
das ciências sociais no Brasil. É significativo
que, quando não mais se questiona o seu lugar na
vida intelectual brasileira, alguns dos protagonistas
do seu processo de institucionalização sintamse
à vontade para se aventurar em outros gêneros
que não a monografia acadêmica. O ensaísmo,
em particular, tem a vantagem de ultrapassar possíveis
limitações do trabalho universitário, especialmente
a excessiva especialização.
Mas Weffort não muda apenas de gênero, também
seu enfoque analítico não é mais o mesmo de
trabalhos anteriores. Antes, foi um autor bastante
identificado com o marxismo, o que se percebe na
sua crítica à teoria da dependência, desenvolvida
com base principalmente no argumento de que ela
não resolve “o problema de como combinar a
dependência externa (âmbito das relações entre as
Nações latino-americanas e os ‘países centrais’) e a
dependência interna (âmbito das relações de produção
e de classe no interior das Nações latinoamericanas)”
(Weffort, 1989, p. 169). Numa orientação
diferente, a atual postura do autor de Formação
do pensamento político brasileiro é resolutamente
culturalista. Apoiado, em grande parte, em
Richard Morse (1988), ressalta especialmente o peso,
no pensamento político e na própria experiência
humana no Brasil, da opção cultural tomada por
ibéricos na decisiva conjuntura histórica estabelecida
entre os séculos XII e XVII.
Assim, para entender o pensamento político
brasileiro, é levado a retornar ao Portugal dos
descobrimentos, na sua ambígua relação com a
Idade Média e a Idade Moderna. De forma bastante
sugestiva, chega a defender “que o ponto de
partida do pensamento brasileiro se acha no século
XV, com o Infante D. Henrique, e não no XVI,
com Maquiavel, ou no XVII, com John Locke” (p.
10). Essa démarche também faz com que pratique
uma história das idéias que não se limita apenas
a autores, mas também leva em conta a história
política e social.
Como é natural, a perspectiva culturalista de
Formação do pensamento político brasileiro traz
vantagens e desvantagens. Ela se revela especialmente
adequada para captar traços presentes na
mentalidade que orientou a colonização brasileira,
por exemplo, um certo medievalismo dos bandeirantes.
Por outro lado, não deixa de subestimar
alguns aspectos materiais mais modernos,
como a orientação mercantil da colonização.
O culturalismo de Weffort também se percebe
no tratamento dos autores, em particular,
Gilberto Freyre. Considera que sua análise teria a
vantagem de, a partir da cultura, tratar da economia.
Dessa maneira, o sociólogo pernambucano
seria capaz de não reduzir o escravo à coisa, mas
reconhecer sua humanidade. Não é, entretanto,
dada muita atenção à limitação decorrente da
explicação de Casa-grande & senzala se deter nos
muros do engenho. Obscurece-se, dessa maneira,
a percepção de que aquilo que está por trás da
produção no latifúndio e, conseqüentemente, da
formação da própria família patriarcal brasileira, é
o mercado externo, onde se realiza o que Caio
Prado Jr. chamou de “sentido da colonização”.
É bem possível que a passagem de uma postura
mais materialista para uma atitude mais culturalista
se deva, em grande parte, ao período em
que o autor de Formação do pensamento político
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brasileiro esteve à frente do Ministério da Cultura
(Minc). Caricaturalmente, talvez se pudesse sugerir
que o marxista, que ajudou a fundar o Partido
dos Trabalhadores (PT), se converteu no culutralista
ministro do governo Fernando Henrique
Cardoso. O que essa caricatura esquece, contudo,
é que no intervalo entre a Secretaria Geral do PT
e o Minc, Weffort escreveu dois ensaios – Por que
democracia? e Qual democracia? – que tiveram
um importante papel na conversão da esquerda
brasileira à democracia.
Na verdade, como outros intelectuais latinoamericanos
de esquerda, Weffort foi profundamente
marcado pela experiência do regime autoritário,
o que contribuiu para que, como sintetizou
Carlos Nélson Coutinho (1984), passassem a encarar
a democracia como um valor universal. No
caso em questão, essa sensibilidade para entender
a democracia e suas práticas além de simples
arranjos institucionais, como “formas de algum
conteúdo” (Weffort, 1992, p. 99), não deve ter deixado
de contribuir para uma posterior abertura
diante da cultura.
Em termos ainda mais polêmicos, talvez se
pudesse tomar a trajetória de Weffort como prova
da pretensa convergência – reiteradamente afirmada
nos últimos tempos – entre o PT e o Partido
da Social-Democracia Brasileira (PSDB). Nessa
perspectiva, o caminho político do principal crítico
do populismo possivelmente fosse tomado como
indicação, especialmente forte, da proximidade
entre esses dois partidos “paulistas”. Afinal, as
presidências Fernando Henrique Cardoso e Luis
Inácio Lula da Silva teriam, como principal realização,
o programa negativo de demolição do
“legado da era Vargas”. Em outras palavras, PT e
PSDB procurariam expandir, de São Paulo para o
restante do país, a representação classista, implícita
ou explicitamente defendida pela crítica do
populismo.
No entanto, em sentido oposto, o mais interessante
em Formação do pensamento político
brasileiro é como se busca uma conciliação com
a história brasileira. De maneira significativa, a
resposta à pergunta de Raymundo Faoro (1984) –
“existe um pensamento político brasileiro?” – é
positiva. De certa forma, o próprio aparecimento
de um livro que serve de introdução ao pensamento
político brasileiro, inspirado em outro,
também organizado por Weffort, Os clássicos da
política (1989), dedicado a um tema mais evidente,
o pensamento político europeu, é indicação da
existência desse pensamento.
A resposta positiva à questão da existência de
um pensamento político brasileiro não deixa de
ser, porém, difícil, até porque a formação do pensamento
político brasileiro não vislumbra, pelo
menos no período analisado por Weffort, a autonomização
de seu campo de atuação. Isso é diferente
inclusive do outro processo brasileiro clássico
de formação, o da literatura, que, segundo
Antonio Candido (1993), criou, no final do século
XIX, um sistema literário. Ao contrário, a grande
realização dos ensaístas, dos anos de 1920 e 1930,
estaria precisamente em revelar a ligação do
Estado com a sociedade brasileira.
Aparece aí o grande tema de Formação do
pensamento político brasileiro, a saber, o povo
como assunto tratado por intelectuais. A referência
ao povo como tema leva o livro a empreender um
longo caminho, que começa, já na Colônia, com a
discussão sobre a humanidade dos povos conquistados,
realizada pelos jesuítas Manuel da Nóbrega
e Antonio Vieira; passa pela percepção, por parte
de José Bonifácio, logo depois da Independência,
de que não se poderia ter verdadeira nação num
país baseado na escravidão; ganha forma lapidar
na interpretação de Joaquim Nabuco, durante a
crise do Império, de que se precisa pôr fim ao trabalho
servil, “fenômeno social total”, para se criar
algo como um povo; vai mais longe com a indicação
de Euclides da Cunha, no contexto posterior à
proclamação da República, de que o verdadeiro
Brasil é o dos sertões e não o do litoral; e abre
novas perspectivas na exploração, empreendida
pelos ensaístas dos anos de 1930, Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., de
quem é o povo brasileiro.
Por outro lado, o outro assunto importante
de Formação do pensamento político brasileiro, o
Estado, teria uma história mais recente no país.
Weffort argumenta até, contra uma influente linha
de interpretação do Brasil, que a formação do
Estado no país seria tardia, coincidindo com a
vinda, em 1808, da família real portuguesa para o
Rio de Janeiro.
Não é, entretanto, difícil perceber que os
dois temas privilegiados neste ensaio se confunRESENHAS
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dem, a atenção ao povo sendo, desde a Colônia,
motivada, em grande parte, por considerações de
“razão de Estado”. Tal perspectiva é particularmente
forte para o importante ministro de Pedro
I, José Bonifácio, e para o influente consultor jurídico
do Ministério do Trabalho de Getúlio Vargas,
Oliveira Vianna.
Mas, como nota o próprio Weffort, se é mais
fácil “saber quando começa a formação do pensamento
social e político brasileiro, mais duvidoso é
decidir quando essa formação se completa” (p.
11). Na quase impossibilidade de precisar quando
isso ocorre, o autor decide privilegiar o Brasil
rural, encerrando sua análise nos anos de 1950.
No entanto, não explica inteiramente por que o
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb),
representado especialmente por Hélio Jaguaribe, é
contemplado no livro, mas não a USP, de Florestan
Fernandes.
Mesmo que os estudos sobre desenvolvimento
realizados na USP tenham se dado sobretudo na
década de 1960 e reflitam uma profissionalização
do trabalho intelectual, em que professores universitários
tomam o lugar do que se poderia chamar
de intelectuais diletantes, não deixou de haver
interlocução entre as duas instituições. Os encontros
e desencontros entre Iseb e USP podem até
serem tomados como marcos importantes de um
novo momento no processo de formação do pensamento
social e político brasileiro: o da emergência
do Brasil urbano.
A exclusão da escola onde Weffort se formou
não é, todavia, inocente. O motivo dessa supressão
parece-me estar na sua resposta à pergunta de
Faoro sobre a existência de um pensamento político
brasileiro. Isto é, por trás da resposta positiva
à questão está uma certa valorização da tradição à
qual esse pensamento político está vinculado. Se
ainda é possível relacionar essa tradição com o
Iseb, mais difícil é fazer o mesmo com as ciências
sociais da USP, que se estabeleceram a partir da
crítica ao pensamento social e político anteriormente
dominante no Brasil.
Em outras palavras, Formação do pensamento
político brasileiro faz parte de uma busca,
mais do que centenária, de resposta à questão:
quem somos?. Mais importante, oferece uma resposta
otimista à pergunta, que só tem se tornado
mais comum ultimamente. Mais: a (re)conciliação
com a história brasileira expressa no livro talvez
possa até ser tomada como sinal de crescente
confiança no país. Ironicamente, porém, Weffort,
ao assumir essa postura, afasta-se da tradição na
qual se formou…
Bibliografia
CANDIDO, Antonio. (1993), Formação da literatura
brasileira. Belo Horizonte, Itatiaia.
COUTINHO, Carlos Nelson. (1984), A democracia
como valor universal e outros ensaios. Rio
de Janeiro, Salamandra.
FAORO, Raymundo. (1984), Existe um pensamento
político brasileiro? São Paulo, Ática.
FERNANDES, Florestan. (1987), A revolução burguesa
no Brasil: um ensaio de interpretação
sociológica. Rio de Janeiro, Guanabara.
MORSE, Richard. (1988), O espelho de Próspero.
Trad. Paulo Neves. São Paulo, Companhia
das Letras.
WEFFORT, Francisco. (1980), O populismo na
política brasileira. Rio de Janeiro, Paz e
Terra.
_________. (1984), Por que democracia? São
Paulo, Brasiliense.
_________. (org.). (1989), Os clássicos da política.
São Paulo, Ática.
_________. (1992), Qual democracia? São Paulo,
Companhia das Letras.
BERNARDO RICUPERO
é professor do Departamento
de Ciência Política da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo (USP).

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