terça-feira, 31 de março de 2009

Celso Furtado: a Paraíba é uma miniatura do Nordeste

Vejam que pérola do velho Celso Furtado: "O estado da Paraíba constitui de alguma forma uma miniatura do Nordeste, pois ali estão representadas de forma equilibrada as três áreas que definem o perfil ecológico regional. Em primeiro lugar está a faixa úmida litorânea dominada secularmente pela monocultura canavieira. Em seguida mostra-se a área agreste intermediária, tradicionalmente caracterizada pela policultura. Por último, cobrindo metade da superfície do estado e conferindo cerca de metade da população, perfila-se a área sertaneja, onde uma pecuária extensiva se integra com atividades agrícolas comerciais e de subsistência. (...) Uma observação mais detida da economia desse Estado talvez seja a forma mais fácil de captar o essencial da problemática nordestina." (Furtado, Celso - A nova dependência. Paz e Terra, 2ª ed., p.141, Rio de Janeiro, 1982)

Ainda sobre a Paraíba e suas lideranças políticas:
"Os adversários das mudanças não tardaram em perceber que o caminho mais curto para alcançar seus objetivos consistia em privar-me da confiança do presidente [João Goulart]. Concentraram em mim as baterias pesadas. O senador paraibano Argemiro de Figueiredo, com base eleitoral na cidade de Campina Grande, cujo comércio era tradicionalmente ligado à indústria da seca, iniciou uma campanha de difamação pessoal contra mim, 'astuto economista, empenhado em bolchevizar o Nordeste'. Recordava-me de que, em minha época de estudante do Liceu Paraibano, o então interventor do Estado, Argemiro de Figueiredo, recebera da classe comerciante de Campina Grande, como presente de aniversário, uma bela mansão, evento que havia chocado minha consciência política de adolescente. Não seria com o apoio dessa gente que transformações reais teriam lugar no desvalido Nordeste. Não contasse eu com a simpatia de boa parte da imprensa as grandes capitais do Centro-Sul, e minha imagem de homem público teria sido seriamente enodoada." (Furtado, Celso - A fantasia desfeita. Paz e Terra, 3ª ed., p. 67, Rio de Janeiro, 1989.)

segunda-feira, 23 de março de 2009

Palestra de Raymundo Faoro no IEA: A questão nacional e a modernização

Dica: acessem a palestra de Raymundo Faoro no Instituto de Estudos Avançados. Abaixo, segue o link do site do índice de vídeos do IEA. No mesmo índice há outro vídeo excelente, da mesa redonda com Gabriel Cohn e Alfredo Bosi com o tema: Raymundo Faoro pensador do Brasil. IMPERDÍVEL!!!!
http://www.iea.usp.br/iea/online/midiateca/cienciapolitica/index.html

Juarez Brandão Lopes - A cultura política do mando: subserviência e nossas populações pobres

Revista Brasileira de Ciências Sociais nº 25
A cultura política do mando: subserviência e nossas populações pobres

Juarez Brandão Lopes

É uma boa surpresa ver uma socióloga voltar-se para os clássicos. Surpresa ainda mais agradável quando se trata de tema como a pobreza. Concentrando a atenção de muitos estudiosos, as populações pobres vêm sendo hoje, a maioria das vezes, focalizadas como um conjunto de farrulias definido por critérios abstratos, quais sejam, não atingirem dada renda (familiar ou per capita) ou não terem satisfeitas necessidades consideradas básicas. Questão propriamente sociológica seria estudar os critérios usados pela sociedade para definir a pobreza, o que nos levaria à consideração de nossos valores. É verdade que esses estudos, ao traçarem o perfil demográfico e sócio-econômico do conjunto de famílias pobres, levantam questões sociológicas, como a dos mecanismos macrossociológicos e macroeconômicos que levam às carências detectadas. Poder-se-iam também levantar questões sobre mudanças nas características da pobreza e, correlatamente, sobre as mudanças estruturais na sociedade global por elas responsáveis: Entretanto, se os atuais estudos da pobreza apontam tais questões, que eu saiba eles nunca realmente se empenharam em refletir sobre elas.

Ora, Teresa Sales nesse capítulo de sua tese de livre-docência aborda diretamente questões sociológicas e políticas de magna importância relacionadas com a pobreza. Estuda a subserviência entranhada nas relações sociais das populações pobres brasileiras, as conseqüentes raízes ideológicas da sua dominação, e as da cidadania consentida. E vai buscar suas origens mais profundas na nossa formação histórico-social. Daí a sua ida a Antonil, a Couty e, sobretudo, aos nossos clássicos, particularmente Gilberto e Sérgio, como ela intimamente os chama. Encontra-as nas relações de mando e subserviência nascidas no nosso passado colonial escravista. E aponta traços herdados dessa formação, bem marcados no presente, particularmente no que diz respeito a algumas observações apropriadas suas, recolhidas de suas várias experiências de trabalho de campo no Nordeste.

Sem, nem de longe, querer tirar o mérito de sua empreitada, quero comentar dois ou três aspectos problemáticos que, para enfrentar satisfatoriamente, ter-se-ia de ir bem mais longe do que ela foi.

Comento os seguintes pontos: em primeiro lugar o da mudança (em contraste com a questão de sua persistência) nos atributos e valores analisados e sua conseqüente diferenciação regional; em segundo, a questão da perspectiva adotada no ensaio de Teresa Sales, como se relaciona com a dos estudos contemporâneos mais usuais da pobreza; e, finalmente, a questão das transformações que se podem vislumbrar no conjunto das populações pobres e das implicações que daí podem resultar nos seus aspectos valorativos e ideológicos. Tomo um ponto de cada vez.

Teresa coloca a cultura do mando/subserviência no contexto da formação social brasileira e, especialmente, do escravismo. Aponta o momento do Brasil-Colônia, com a prevalência da cidadania consentida pelo senhor territorial, como sendo aquele em que tais atitudes-valores tiveram a sua origem. Para ela, esses padrões atravessaram a abolição e o seu rompimento somente foi se dar nos anos 60 deste século, com a expulsão dos trabalhadores rurais para fora das grandes propriedades.

Aceito a correção do tratamento feito por Teresa daqueles padrões e da sua origem. Discordo apenas da ênfase posta na sua persistência, como se ela ocorresse por igual, em todo o Brasil. A meu ver, as mudanças ter-se-iam iniciado na segunda metade do século XIX, com o surto cafeeiro, e com elas teria começado pronunciada diferenciação regional. Diferenciação que se acentuou nos anos 80 do século passado e cem a abolição, durante a dissolução do regime escravista. Comparem-se a área açucareira do Nordeste com a zona cafeeira. Louvo-me em Eisenberg (1972) e Galloway (1971), para o Nordeste, e em Dean (1977) e Holloway (1984), para a zona do café. A diferença crucial entre as duas regiões é o regime de trabalho que substitui o escravo. No Nordeste, onde já nos meados do século XIX formara-se ampla camada de moradores em terras cedidas, estes, com a dissolução do regime escravista, transformaram-se em moradores de condição, numa troca quase feudal do uso da terra por trabalho na terra do senhor. De seu lado, no- Centro-Sul, no cerne da economia brasileira, com o impetuoso surto cafeeiro do planalto Paulista - e não no vale do Paraíba, onde o café, em decadência, se agarrou à força de trabalho escrava - foi que a transição para o trabalho livre, com o trabalhador italiano, deu-se mais completamente. Pouco adiantaram nessa área tentativas de isolar o trabalhador e prendê-lo à fazenda. A mobilidade do trabalhador imigrante, para fora do país e para a cidade, e a mobilidade da própria zona cafeeira na sua marcha para oeste criaram as condições para o trabalho livre e, contraditoriamente, nas terras que o café abandonava, na sua esteira, condições para a pequena propriedade e a meação (Monbeig, 1952) - atuando tudo isto como forte dissolvente da cultura do favor.(1) Assim, nessa região o trabalhador livre nacional, que vivia nos interstícios do regime escravista, com a dissolução desse regime, tendo a ele se juntado os libertos, continuou à margem do sistema central de produção, como parte da nossa pobreza secular, desintegrando-se pouco a pouco suas relações de subordinação tradicionais.

Sem começar a fazer a história das relações sociais do Centro-Sul, sublinho apenas qual é o nervo da argumentação. Concordo que traços profundos das relações de subordinação-superordenação brasileiras tenham suas raízes na formação histórico-social do país, e que se faz necessário ir-se à formação escravista colonial. Precisa-se, todavia, ir além. Outro momento crucial é o da constituição do trabalho livre, no início da República. Momento em que, em certas regiões do Brasil, diferenciaram-se significativamente as condições sociais, coisa que só veio a ocorrer noutras regiões bem mais tarde. Para sermos provocativos, podemos observar que, no Centro-sul, há muito cultura do favor e valores que tais são meros resquícios localizados à margem da coluna mestra da estrutura social, que é simplesmente capitalista.

Passo agora a uma outra questão. Qual a relação do tipo de análise feita por Teresa Sales com o da maioria dos estudos feitos hoje sobre pobreza, que delimitam o conjunto de famílias que apresentam carências básicas, de renda e/ou na satisfação de dadas necessidades mínimas (condições de habitação, saneamento etc.)?

O ponto que desejo levantar é simples. Parece-me que a cultura do favor, as relações de mando/subserviência, quando no passado estavam no auge de seu vigor, penetravam extensas partes da sociedade, bem além daquelas populações que poderiam propriamente ser chamadas de pobres. Camadas médias urbanas, então chamadas de remediadas, agregados das casas-grandes, partícipes da casa e mesa do senhor, estavam - é escusado dizer - imersos naquela cultura do favor. Nem por isso, repito, deixavam de ter suas necessidades minimamente satisfeitas. Os pobres e as escassas camadas intermediárias usufruíam ambos dos favores dos senhores e subordinavam-se a esse estamento.

Resta assim o problema da estrutura social responsável pela pobreza, estrutura essa sobejamente estudada por nossos clássicos, aos quais devemos juntar Caio Prado. Trata-se, como sabido, do latifúndio escravista omniprodutor, que no período colonial só deixava lugar para uma magríssima camada intermédia, relegando todo o resto da população que não era senhor nem escravo à extensa camada pobre, rural e urbana. Quão extensa era esta camada, livre e pobre, para não dizer paupérrima; basta lembrar que o último censo do período escravocrata, em 1872, acusa numa população total de cerca de 10 milhões apenas pouco mais de 1,5 milhão de escravos! Como os senhores e a camada intermediária eram pouco numerosos...

Neste passo, aproveito para fazer algumas observações sobre as relações entre pobreza e aspectos ideológicos da estrutura de dominação, percorrendo o caminho inverso. Isto é, olhando do presente os indícios do futuro e enfocando a questão de como mudanças estruturais, ao invés de persistências, podem chegar a condicionar mudanças em valores, atitudes e orientações.

Refiro-me às mudanças das estruturas produtivas e a outras mudanças econômicas mais amplas, que, nos países capitalistas centrais, vêm há quase dois decênios alterando profundamente os requisitos da força de trabalho (elevando- a formação educacional e a qualificação exigidas), enfraquecendo estruturas sindicais, erguendo os patamares de desemprego e ocasionando muitas outras transformações sociais, que no seu conjunto resultam no aparecimento de uma "nova pobreza".

Tais efeitos econômicos e sociais, perfeitamente visíveis nos países centrais, começam no último qüinqüênio a atuar nas partes mais industrializadas dos países periféricos, inclusive no Brasil. De modo sucinto posso dizer que nesses países à exclusão social secular começa a somar-se uma nova exclusão, desde que tais países não sejam desalojados dos mercados mundiais e principiem, em conseqüência, um processo de desindustrialização.

Pensando o Brasil, dois comentários relacionados com nosso tema acorrem à mente. Em primeiro lugar, que tais processos deverão significar, além de uma diferenciação das camadas pobres em geral, uma nova diferenciação em termos regionais, já que esses processos ocorrem na parte mais industrializada do país, que se concentra no Centro-Sul. Em segundo lugar, a diferenciação dos pobres - adicionando-se à pobreza tradicional os "novos pobres" - faz-se de maneira peculiar, o que nos leva a meditar sobre um desaparecimento mais completo dos resquícios de submissão que ainda porventura marquem os pobres. Se se podem pensar os herdeiros da nossa pobreza secular como populações que nunca chegaram a ser completamente incluídas na sociedade urbano-industrial, agora tem-se uma nova exclusão, prenhe de significados. É uma exclusão daqueles que antes eram parte ou que tinham expectativas realistas de virem a ser parte daquela sociedade, por serem dotados das características educacionais (alfabetização, alguns anos de primário) e de semiqualificação antes suficientes e agora não mais, para entrarem nos setores modernos da economia. As transformações que podem ocorrer nas atitudes e valores dessas novas camadas pobres e nos seus padrões de subordinação, expressos em novas formas de comportamento político e novos movimentos sociais, somente podem ser objeto de vagas conjecturas. Fica apenas a convicção de que deverão ser profundas.

Estes são os comentários que faço. Menos que críticas, eles servem como testemunhos da riqueza e oportunidade do texto de Teresa Sales, que, ao pensar a pobreza, resolveu não olhar apenas para a produção sociológica atual, mas voltar-se também para trás e inspirar-se nos escritos de Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Oliveira Vianna.

NOTAS

1. Não é meu propósito analisar aqui os determinantes da constituição do regime de trabalho que surgiu na zona do café, mas tão-somente sublinhar o que significou para o rompimento da dependência histórica do trabalhador ao grande proprietário. Estão entrelaçados como causas das especificidades do colonato do café, coisas tais como a longa experimentação desde os meados do século com o trabalho imigrante; o domínio da estrutura política estadual pelos grandes cafeicultores; o subsídio pelo Estado, durante o período crucial, da imigração, de forma que atendesse sob medida os interesses do café; a abundância de terras apropriadas ao seu cultivo; sem esquecer o ímpeto mesmo da demanda mundial pelo produto. Assim se atraiu uma oferta abundante de mão-de-obra, relativamente barata (ver Holloway, entre outras fontes).


BIBLIOGRAFIA

DEAN, Warren. (1977),Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Trad. Waldívia Marchiori Portinho. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

EISENBERG, Peter L. (1972), "Abolishing slavery: the process on Pernambuco's sugar plantations". The Hispanic American Historical Review 52 (4), nov., pp. 580-98.

GALLOWAY, J. H. (1971), "The last years of slavery on the sugar plantations of Northeastern Brazil". The Hispanic American Historical Review 51 (4), nov., pp. 586-605.

HOLLOWAY, Thomas H. (1984), Imigrantes para o café. Trad. Eglê Malheiros. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

MONBEIG, Pierre. (1952), Pionniers et planteurs de São Paulo. Paris, Armand Colin.


Vera da Silva Telles - Cultura da dádiva: avesso da cidadania

http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_25/rbcs25_05.htm

Revista Brasileira de Ciências Sociais nº 25

Vera Telles

Como compreender que, depois de mais de cem anos de história republicana, ainda persista no Nordeste brasileiro a realidade da pobreza, da violência e do mandonismo local? Essa é a questão que Teresa Sales propõe neste artigo. Antes de recorrer às explicações conhecidas sobre as perversões do capitalismo brasileiro, indaga-se sobre as relações entre desigualdade social e cultura política. É pelo prisma das relações de mando e subserviência que o problema se arma. A submissão política, argumenta a autora, é elemento definidor da pobreza, sua raiz está na "cultura da dádiva" e é isso sobretudo que elucida as vicissitudes da cidadania brasileira. A questão é interessante e provocativa, sobretudo no modo como a autora propõe discutir as relações (nada evidentes, sempre problemáticas) entre cidadania e desigualdade social. Tem, ademais, o mérito de resgatar questões já clássicas na literatura especializada, retirando-as por assim dizer de uma jurisdição própria da questão agrária e também do assim chamado Brasil tradicional, para projetá-las no centro de um Brasil moderno e miserável. Não se trata tanto - apesar de o texto por vezes sugerir isso - de que a questão rural contenha a chave explicativa dos dilemas do Brasil atual. O que Teresa Sales nos propõe é que a pobreza rural - mais especificamente, a pobreza do Nordeste brasileiro - pode esclarecer algo da persistência de uma tradição que reproduz desigualdades, repõe mandonismo e subserviência e opera ao revés das concepções modernas de direitos e cidadania. A noção de cidadania concedida é introduzida para nomear essa continuidade na sua dimensão propriamente política, chamando a atenção para o fato de que proteção, favor e patronagem vêm ocupar o lugar de direitos civis inexistentes. Cidadania concedida é uma contradição em termos, reconhece a autora para esclarecer a seguir que a noção tem o propósito de "fazer realçar características importantes de nossa cidadania pretérita e atual e que são, ao mesmo tempo, parte constitutiva de nossa cidadania". A cidadania concedida deita raízes nas relações de mando e subserviência "cuja manifestação primeira se deu no âmbito do grande domínio territorial que configurou a sociedade brasileira nos primeiros séculos de sua formação". E se expressa na figura do homem livre e pobre, "que dependia dos favores do senhor territorial [...] para poder usufruir dos direitos elementares de cidadania civil", de tal modo que vida, trabalho, bens e mobilidade pessoal eram "direitos que lhes chegavam como dádiva do senhor de terras". Essa é a matriz que persistiu ao final da ordem escravagista, que atravessou toda a República Velha, que foi e continua sendo reposta no tradicional (e nem sempre bem entendido, argumenta) coronelismo, e que, ainda hoje, no Brasil moderno, é reatualizada nas relações de favor que articulam forças políticas locais e burocracias estatais.

No entanto, a noção de cidadania concedida traz alguns problemas que merecem um comentário. Antes de mais nada, seria preciso dizer que as relações descritas sob o signo da dádiva podem ser tomadas como o avesso da cidadania, seja qual for o conceito que dela se tenha. O problema aqui não é tanto a exigência de rigor conceitua) no plano da teoria. Quer me parecer que a noção de cidadania concedida tem no texto um sentido muito preciso no movimento da argumentação. Diria que é uma noção que faz sentido para quem está com os olhos voltados para os dilemas atuais da cidadania, questão que move a indagação da autora e a leva a reinterpretar tradições históricas e seus intérpretes. Daí o interesse pela obra de Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda, já que, cada qual à sua maneira, os três tematizaram exatamente aquilo que a interessa - a subserviência, diferente da obediência tratada pela ciência política, pois "definida nos termos do pedir, para além do obedecer", "implica necessariamente um provedor forte" e supõe o domínio rural sobre o qual se erguem poder privado, mandonismo, dádiva e favor. E portanto na obra desses autores que Teresa vai buscar as referências para compreender a cultura política de um país no qual "ou bem se manda ou bem se pede". Arriscaria dizer que o problema aqui está no fato de esses autores terem sido levados a sério demais. Melhor dizendo: no modo como os apresenta fica a impressão de que Teresa se deixou aprisionar na lógica argumentativa dos autores. E se isso é problemático é porque, assim me parece, não consegue escapar do que eu chamaria metaforicamente de uma "maldição das origens" (o latifúndio, o patriarcalismo, as raízes ibéricas). Com isso estou sugerindo que se tradições persistem, faltou problematizar essa persistência. E mais: diria que é na noção mesma de cidadania concedida que está a armadilha. Pois, tal como essa noção está formulada, ela neutraliza essa problematização ao sugerir uma espécie de simetria (em negativo, é certo) entre direitos e proteção, os primeiros sendo "garantidos" pelo mando - sendo na verdade sua extensão -, o avesso portanto da relação que os direitos constroem pelo estatuto de sujeito que conferem ao outro.

Essa é questão contida no texto, porém não formulada. Talvez se Teresa se tivesse detido na "contradição em termos" que reconhece na noção de cidadania concedida, se tivesse explorado a antinomia entre favor e direitos, proteção e cidadania, houvesse sido aberto um caminho profícuo para compreender o enigma brasileiro, de relações sociais que se estruturam sem a mediação dos direitos, de tal modo que continuam a ser regidas pelo arbítrio sem limites do poder privado, entre o favor e a violência, duas faces de uma mesma recusa da alteridade.

Talvez por aí seja também possível encontrar os fios que articulam a truculência dos conflitos rurais a que Teresa faz referência em certo momento e o caráter itinerante do trabalhador rural brasileiro, que busca escapar, pela migração, às relações de mando e subserviência, mas termina por contribuir para aprofundar desigualdades sociais. Arriscando-me em um terreno com o qual tenho pouca familiaridade, diria que violência e migração, tal como proposto por Teresa, poderiam ser vistas como expressão de um mundo social que se ordena sem as mediações representativas que os direitos constroem ou deveriam construir, de tal modo que resistências e recusas às opressões do mando privado são "resolvidas" no jogo bruto da força ou então por essa espécie de nomadismo de uma gente sem nome, com vidas que parecem regidas pela aleatoriedade dos destinos (e azares) de cada um. É certo que seria descabido formular as questões nesses termos quando a referência é a autarquia do mundo rural de décadas passadas. Mas já não o é tanto quando a referência é o Brasil atual, sendo que a questão que intriga, que suscita a reflexão, é precisamente a reiterada obstrução de uma dimensão pública que balize o jogo dos interesses e construa a medida a partir da qual identidades podem se constituir e sujeitos podem se firmar na trama mesma dos conflitos. Com isso não estou propondo explicações sobre questões que escapam muito às minhas possibilidades, mas tão-somente sugerindo que talvez seja o caso de examinar um pouco mais detidamente a noção de cidadania, pelo prisma mesmo que é proposto no texto, ou seja, o modo como as relações sociais são ordenadas e, por essa via, interrogar as evidências de tradições persistentes.

E isso me leva a um último comentário. Ao tratar do que define como "fetiche da igualdade", Teresa enfatiza a reprodução das desigualdades mediante um "encurtamento das distâncias sociais" que oblitera o conflito e se traduz na conciliação. É por essa via que resgata a idéia da "democracia racial" de Gilberto Freyre, essa peculiar mistura das raças que é "um dos fatores que tornam tão nebulosas as nossas diferenças sociais". E também o "homem cordial", de Sergio Buarque, para enfatizar a informalidade no convívio social, que neutraliza diferenças sob a ética familiar do mundo privado. A questão é mais do que pertinente. No entanto, parece-me imprópria a idéia de um fetiche da igualdade, já que não existe aqui algo próximo a uma igualdade idealizada, o "encurtamento das distâncias" sendo, ao contrário disso, um modo de reposição das hierarquias próprias do mundo privado, a tradução adocicada das relações de mando e subserviência por meio das quais desigualdades se processam. A questão na verdade poderia ser interpretada em uma outra chave, chave ademais que o próprio Sergio Buarque sugere ao contrapor cordialidade e civilidade, antinomia que retrata exatamente as dificuldades de se romperem os padrões privativistas do mando patriarcal. Para colocar nos termos da nossa discussão, é aqui também que as vicissitudes da cidadania brasileira se especificam, já que na ausência de uma esfera pública que firme os direitos como medida nas relações sociais, estas tendem a ser inteiramente regidas pela moral privada do "mundo da casa". E é aqui, mais uma vez, que talvez se possa recolocar a questão proposta por Teresa, não na linha de continuidade que sugere a noção de cidadania concedida, mas, ao contrário, na tensão que podemos pressupor nas relações entre cidadania e tradições, sendo estas repostas exatamente na ausência de uma medida de igualdade que os direitos constroem e pela qual as hierarquias do mundo privado podem, ao menos virtualmente, ser dissolvidas para se transfigurarem nas diferenças de classe e na lógica propriamente moderna de um conflito social mediado pelas práticas de representação.


Teresa Sales - Raízes da desigualdade social na cultura política brasileira

Revista Brasileira de Ciências Sociais nº 25

Raízes da desigualdade social na cultura política brasileira

Teresa Sales

Seguem-se a este artigo os comentários de Juarez Brandão Lopes, Francisco de Oliveira, Vera Telles e da própria autora.

Este artigo trata da questão de nossa desigualdade social, que tem sido o cartão de apresentação do Brasil ao mundo, enquanto a nossa moeda para uso interno se traduz no fetiche da igualdade. Ao adentrar nas raízes da desigualdade social na cultura política brasileira, tentei na verdade traçar um retrato da construção de nossa cidadania, que teve sua expressão primeira naquilo que nomeei como cidadania concedida. No âmbito da sociedade escravocrata os homens livres e pobres, sujeitos ao favor dos senhores de terras, amesquinharam-se na sombra de suas dádivas. A cultura política da dádiva sobreviveu ao domínio privado das fazendas e engenhos coloniais, sobreviveu à abolição da escravatura, expressou-se de uma forma peculiar no compromisso coronelista e chegou até nossos dias.

Abordo as raízes dessa cultura da dádiva, que é a expressão política de nossa desigualdade social, mediante a relação de mando/subserviência cuja manifestação primeira se deu no âmbito do grande domínio territorial que configurou a sociedade brasileira nos primeiros séculos de sua formação. A dádiva chega a nossa res publica substituindo os direitos básicos de cidadania, que não nos foram outorgados pelo liberalismo caboclo que aqui aportou na passagem do século. E, nessa medida, a saída para as relações de mando/ subserviência que estão na base da cultura da dádiva, contribuindo para aprofundar nossas desigualdades, tem se dado em duas direções: em situações de fuga ou itinerância por parte do trabalhador rural e das populações pobres em geral, do que a história das migrações internas no Brasil é o exemplo mais contundente; e na reificação em todas as situações, dos que permanecem no local de origem ou dos que buscam saída na itinerância, do fetiche da igualdade. O fetiche da igualdade, para a definição do qual me vali dos conceitos "democracia racial" de Gilberto Freyre e "homem cordial" de Sergio Buarque de Holanda, são os fatores mediadores de nossas relações de classe, que têm ajudado a dar uma aparência de encurtamento das distâncias sociais, contribuindo dessa forma para que situações de conflito freqüentemente não resultem em conflito de fato, mas em conciliação.

A cidadania concedida, que está na gênese da construção de nossa cidadania, está vinculada, contraditoriamente, à não-cidadania do homem livre e pobre, o qual dependia dos favores do senhor territorial, que detinha o monopólio privado do mando, para poder usufruir dos direitos elementares de cidadania civil. O rompimento com essa cidadania concedida dar-se-ia apenas com o amplo processo de expulsão do trabalhador rural para fora do grande domínio territorial nos idos dos anos de 1960. À abolição da escravatura, que poderia ser um marco para esse rompimento, seguiu-se o compromisso coronelista, ou, mais genericamente, os mecanismos de patronagem e clientelismo que marcaram toda a nossa Primeira República, contribuindo para perpetuar as bases sociais da cidadania concedida.

A cultura política de que trato caracteriza-se, diferentemente do enfoque em geral adotado nos estudos sobre cultura política e democracia, como uma espécie de cimento das relações de mando e subserviência, que fornece a base para a continuidade de tais relações, as quais, por sua vez, são associadas à cultura da dádiva. O Tocqueville que declarava ter escrito sobre seu país sem preconceitos, mas não sem paixão, dar-me-ia uma pista para observar os elementos presentes em nossa cultura política que representam continuidade em relação aos padrões de mando e subserviência de nosso passado. Um desses elementos de continuidade diz respeito à nossa estrutura agrária assentada no grande domínio territorial, que continuou praticamente intocada em vários pactos de poder. A análise desses elementos de continuidade na nossa cultura política mostrou-se relevante para o debate, que se pretende atual, da questão da cidadania e de suas relações com a pobreza.

Nesse sentido, acrescentaria ainda a estas. notas introdutórias que, como elemento subjacente às análises aqui. realizadas, onde aparece mais explicitamente um diálogo com alguns clássicos de nossa historiografia, existe uma pesquisa de campo em comunidades rurais beneficiárias de programas governamentais co-financiados pelo Banco Mundial na região Nordeste. Essa pesquisa foi feita no Cebrap durante o período de 1987 a 1989 e parte do ano de 1990. Realizei-a em várias idas a campo, quando entrevistei trabalhadores rurais, mediadores de programas governamentais, líderes comunitários e técnicos responsáveis pela implementação dos programas.

Cidadania concedida

Conforme enunciado no próprio título, este artigo aborda as raízes da desigualdade social na cultura política brasileira. Se tivesse de definirem poucas e curtas palavras o significado desse enunciado, diria que no nosso país ou bem se manda ou bem se pede. Está no simples conteúdo desses dois verbos o significado mais profundo de nossa cultura política do mando e da subserviência.

O tema do mando na ciência política está mais comumente associado ao seu complemento natural, expresso na obediência. Assim, define Weber o poder como "a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade". Mais preciso, porém, do que o conceito de poder para esse autor, é o de dominação, por ele definida como "a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis" (Weber, 1991:33). Quando me refiro a subserviência e não obediência, estou na verdade redefinindo o outro pólo da alteridade em termos do pedir, para além do obedecer.

O pedir, para além do obedecer, que faz parte do cerne da cultura política da dádiva, implica necessariamente um provedor forte. Ao lado do legado escravista, esse provedor forte, a respeito do qual há um consenso entre os vários autores que se debruçaram sobre nossa herança colonial, foi o domínio territorial. Seja ele expresso como sesmaria, como latifúndio escravocrata ou como grande propriedade, o aspecto que aqui quero resgatar é o de domínio rural ou domínio territorial, ou seja, o que implica a contrapartida do favor, da dádiva, do mando e subserviência.

Da imensa literatura sobre o assunto, tomo alguns autores hoje clássicos na nossa historiografia social para situar aspectos do domínio territorial enquanto provedor da dádiva, começando por Oliveira Vianna. Passando ao largo de suas observações pouco fundadas sobre o caráter mais ou menos aristocrático de nossos latifundiários, o aspecto relevante para os propósitos aqui assinalados é aquele em que ele acentua a centralidade do latifúndio na nossa própria constituição enquanto nação: "nós somos o latifúndio"; em quase-oposição ao luso colonizador que, esse sim, é rural (Vianna, 1987:48). Sergio Buarque de Holanda desenvolve essa idéia ao tratar igualmente de nossas raízes rurais:

Em realidade, só com alguma reserva se pode aplicar a palavra agricultura: aos processos de exploração da terra que se introduziram amplamente no país com os engenhos de cana [...] A verdade é que a grande lavoura, conforme se praticou e ainda se pratica no Brasil, participa, por sua natureza perdulária, quase tanto da mineração quanto da agricultura. Sem braço escravo e terra farta, terra para gastar e arruinar, não proteger ciosamente, ela seria irrealizável; [...] Não foi, por conseguinte, uma civilização tipicamente agrícola o que instauraram 'os portugueses no Brasil com a lavoura açucareira. [Holanda, 1984:18)

O latifúndio tem sido estudado una nossa historiografia sobretudo pelos seus aspectos econômicos. Trata-se nesse caso do latifúndio monocultor voltado para a exportação e baseado no trabalho escravo, cujos principais produtos para exportação, em sucessivos períodos, foram as culturas da cana-de-açúcar e do café (Prado Jr., 1972; Andrade, 1973; Furtado, 1964). No âmbito da cultura canavieira, Gilberto Freyre (1973) destacou dois importantes aspectos do latifúndio: sua responsabilidade .por males que antes dele eram atribuídos à mistura de raças, tais como as más condições de saúde e perturbações do crescimento da população, e outro aspecto com esse relacionado, que era o lado esterilizador do latifúndio quanto à diversidade de cultivos, resultando em péssimas condições de alimentação da população.

Para Oliveira Vianna, a centralidade do latifúndio residia menos nas suas características propriamente econômicas que nas marcas de prestígio e poder do senhor rural. Tal idéia já havia sido expressada pelo nosso "Maquiavel dos Senhores de Engenho" quando afirmava que

O ser Senhor de Engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual deve ser, homem de cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho, quanto proporcionalmente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino. [Antonil, 1982:75, grifos meus]

Outro aspecto da centralidade do domínio rural assinalado por Oliveira Vianna era sua função simplificadora, pelo que ele entendia as características autárquicas do latifúndio, quase anulando a formação da classe comercial, da classe industrial e das corporações urbanas; e sobretudo a formação do que ele denomina clã rural, chefiado pelos senhores de engenho e donos de latifúndios cafeeiros.

Contraditoriamente, os mesmos senhores rurais que estão na base do incomensurável poder privado que foi a marca inconteste de nossa formação histórica até o advento da República, esses mesmos senhores que controlam os aparelhos de justiça, os delegados de polícia e as corporações municipais, são eles que amparam o homem comum de todos esses controles sob a proteção do clã. Oliveira Vianna passa ao largo dessa contradição, situando apenas a segunda parte da equação, quando afirma que o homem que não tem latifúndio é permanentemente indefeso e nenhuma instituição de caráter social o ampara.

Essa função tutelar só a exerce, e eficientemente, o fazendeiro local. Só à sombra patriarcal desse grande senhor de engenhos, de estâncias, de cafezais, vivem o pobre e o fraco com segurança e tranqüilidade. [Vianna, 1987:142)

O latifúndio escravocrata, monocultor e esterilizador da diversidade social (ou divisão social do trabalho, em termos mais modernos) estava, portanto, intrinsecamente vinculado ao poder privado dos senhores de terras. A servidão do trabalho escravo era sem dúvida um lastro fundamental para esse poderio. (Mais um aspecto ilustrado pelo nosso Maquiavel rural: "Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo com que se há com eles, depende tê-los bons ou maus para o serviço" [Antonil,1982:89]). Porém, a relação escravocrata em si não tem a propriedade de definir o poder do senhor de terras nos seus domínios, já que o escravo enquanto tal não passa de uma peça comprada e vendida como qualquer instrumento de trabalho. Daí a continuação da recomendação no mesmo parágrafo citado anteriormente:

Por isso, é necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas. E porque comumente são de nações diversas, e uns mais boçais que outros e de forças muito diferentes, se há de fazer a repartição com reparo e escolha, e não às cegas. [Antonil, 1982:89]

O poder do senhor territorial se concretiza não propriamente em relação àqueles que pelo próprio estatuto de escravos com ele se relacionam na qualidade de um bem possuído e sobre os quais o senhor põe e dispõe à sua vontade e arbítrio, mas em relação à infinidade de agregados que, Brasil afora, foram assumindo relações de trabalho e denominações tão diversas quantas são as nossas diversidades regionais. É sobre esses agregados que Roberto Schwarz (1973) constrói a categoria do favor como a mediação fundamental entre a classe dos proprietários de terras e os "homens livres". São os que buscam a proteção do senhor de terras, chefe do clã na acepção de Oliveira Vianna, contra a anarquia branca.

Os autores que analisam o período pré-abolicionista são unânimes em afirmar o impasse em que se colocavam esses "homens livres", cuja própria sobrevivência física e social passava pelo grande domínio. Ao ponto em que aquela arguta observação de Louis Couty, de que "A situação funcional dessa população pode se resumir em uma palavra: o Brasil não tem povo" (apud Freyre, 1973:35), é sistematicamente endossada por quantos quiseram entender o dilema do homem livre (Mercadante, 1965; Vianna, 1987; Duarte, 1965). Ao situar a famosa frase de Couty, Gilberto Freyre se reporta também a Joaquim Nabuco, que repetiria dois anos depois, em 1883:

São milhões que se acham nessa condição intermédia, que não é o escravo, mas também não é o cidadão [...] Párias inúteis vivendo em choças de palha, dormindo em rede ou estrado, a vasilha de água e a panela seus únicos utensílios, sua alimentação a farinha com bacalhau ou charque; e "a viola suspensa ao lado da imagem". [Freyre, 1973:35-6]

Oliveira Vianna explicitaria as características de tal cidadania, que aqui tomo a liberdade de nomear como cidadania "concedida", desses homens livres:

O que os quatro séculos da nossa evolução lhe ensinam é que os direitos individuais, a liberdade, a pessoa, o lar, os bens dos homens pobres só estão garantidos, seguros, defendidos, quando têm para ámpará-los o braço possante de um caudilho local. Essa íntima convicção de fraqueza, de desamparo, de incapacidade se radica na sua consciência com a profundeza e a tenacidade de um instinto. [Vianna, 1987:146-7]

Cidadania concedida. Uma contradição em termos, assim como o é a bem achada expressão de Santos (1978): "sociedade liberal escravista". O conceito de cidadania concedida tem aqui o propósito de realçar características importantes da nossa cidadania pretérita e atual, e que são, ao mesmo tempo, parte constitutiva da construção de nossa cidadania. Pois aqui, como alhures, a cidadania não é alguma coisa que nasce acabada, mas é construída pela adição progressiva de novos direitos àqueles já existentes (Marshall, 1967). A cidadania concedida está na gênese da construção de nossa cidadania. Isso significa que os primeiros direitos civis necessários à liberdade individual - de ir e vir, de justiça, direito à propriedade, direito ao trabalho - foram outorgados ao homem livre, durante e depois da ordem escravocrata, mediante a concessão dos senhores de terras. Essa dependência da população livre do Brasil escravocrata para com os senhores de terras é que dava aos observadores argutos aquela impressão de que o Brasil não tinha povo.

Ao diagnóstico terrível de que o Brasil não tem povo, não faltaram propostas de solução baseadas no contexto daquele Brasil tomado enquanto país essencialmente agrícola. Haveria que criar uma classe média rural como base social para a constituição de seu povo, proposição que marcou indelevelmente toda a discussão posterior que em vários momentos de nossa história acirrou exaltados ânimos contra a reforma agrária.

Gilberto Freyre acrescentou um outro aspecto para a compreensão dessa alteridade do mando/subserviência, o que foi possível graças ao método por ele utilizado para escrever sua obra maior, baseado na compreensão e na empatia, onde

A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo; de sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido a religião de família e influenciado pelas crendices da senzala [...] Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social. [Freyre, 1973:LXXV]

É nesse contexto da vida íntima que esse autor encontra um ingrediente a mais para o mando.

Transformava-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos e canários – tantas vezes manifestado pelo senhor de engenho quando homem-feito; no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho [...] Mas esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica; têm-se feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político. [Freyre, 1973:51]

Já Sergio Buarque de Holanda busca nas nossas raízes ibéricas os fundamentos para as relações de mando e subserviência. Tais fundamentos estariam assentados na cultura da personalidade que marcou, tanto na Espanha e em Portugal como no Brasil, a falta de coesão e de princípio de hierarquia na vida social.

Nas nações ibéricas, à falta dessa racionalização da vida, que tão cedo experimentaram algumas terras protestantes, o princípio unificador foi sempre representado pelos governos. Nelas predominou, incessantemente, o tipo de organização política artificialmente mantida por uma força exterior, que, nos tempos modernos, encontrou uma das suas formas características nas ditaduras militares [...] À autarquia do indivíduo, à exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: à renúncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior. Por isso mesmo que, rara e difícil, a obediência aparece algumas vezes, para os povos ibéricos, como virtude suprema entre todas. E não é estranhável que essa obediência - obediência cega, e que difere fundamente dos princípios medievais e feudais de lealdade-tenha sido até agora, para eles, o único princípio político verdadeiramente forte. A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares. [Holanda, 1984:9 e 11]

A subserviência encontra menos explicação na bibliografia do que o mando, muito embora ambos sejam pólos da mesma alteridade. Quando Oliveira Vianna se refere à constituição do clã rural, que para ele é a concretização desses vínculos de subserviência, aponta para fatores de ordem política (a necessidade de proteção dos homens livres contra aquilo que chamou anarquia branca) e não para fatores de ordem econômica. Isso porque seu pressuposto é o de que, do ponto de vista econômico, justamente ao contrário, a tendência era no sentido da separação das classes rurais (Vianna, 1987:144). Maria Sylvia de Carvalho Franco, cuja contribuição maior reside justamente em concentrar seu trabalho nesse outro pólo da alteridade, os "homens livres na ordem escravocrata", parte de igual pressuposto para explicar a dominação.

O outro caminho trilhado pelo homem pobre teve seu ponto de partida no caráter prescindível desse sujeito na estrutura sócio-econômica. Essa existência dispensável levou-o, em última instância, a conceber sua própria situação como imutável e fechada, na medida em que as suas necessidades mais elementares dependeram sempre das dádivas de seus superiores. Assim, em sua vida de favor, a dominação foi experimentada como uma graça e ele próprio reafirmou, ininterruptamente, a cadeia de lealdades que o prendia aos mais poderosos. Desprovida de marcas exteriores, sua sujeição foi suportada como benefício recebido com gratidão e como autoridade voluntariamente aceita, fechando-se a possibilidade de ele sequer perceber o contexto de domínio a que esteve circunscrito. [Franco, 1983:104, grifos meus]

A busca das raízes da desigualdade social na cultura política brasileira me fez percorrer algumas interpretações seminais para a relação de mando e subserviência que conduzem a um tipo de cidadania que nomeei como cidadania concedida. Essa cidadania concedida, voltando aos argumentos utilizados no início deste artigo, tem a ver com o próprio sentido da cultura política da dádiva. Os direitos básicos à vida, à liberdade individual, à justiça, à propriedade, ao trabalho; todos os direitos civis, enfim, para o nosso homem livre e pobre que vivia na órbita do domínio territorial, eram direitos que lhe chegavam como uma dádiva do senhor de terras.

Ao monopólio do mando associaram-se níveis de violência cotidiana nas relações do senhor, não apenas com as "peças" de sua propriedade no interior das fazendas e engenhos. Essa violência era até legitimada pelo próprio estatuto da escravidão, regulamentada na tradição e costumes pelos três pês, pau, pão e pano, ao que Antonil ajuntava:

E posto que comecem mal, principiando pelo castigo que é o pau, contudo, prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada, ou levantada; e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos, de que se não usa nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo que de meia dúzia de escravos, pois o cavalo é servido, e tem quem lhe busque capim, tem pano para o suor e sela e freio dourado. [Antonil, 1982:91]

Ao monopólio do mando associavam-se níveis de violência que se estendiam para fora do domínio rural, em relação a toda a população branca e livre que vivia de suas dádivas.(1)

A tese de Maria Sylvia (Franco, 1983) retrata situações de violência desses homens livres na ordem escravocrata que correspondem a todo um sistema de valores centrados na coragem pessoal. É sua forma de expressão em face da violência do mando e da subjugação imperante no domínio territorial ao qual eles estão submetidos. A violência do bando de Virgulino Ferreira, Lampião, e do cangaceirismo que se alastrou em várias regiões do Nordeste num certo momento de nossa história republicana, também são testemunhos dessa reciprocidade de violência. E possivelmente a violência que marca ainda hoje os conflitos de terra no Brasil tem a ver com essas raízes no monopólio do mando e a cultura da dádiva a ele relacionada.

O drama do mando e subserviência, que funda uma cidadania apenas concedida como dádiva ao homem livre e pobre, sofreu mudanças no tempo desde a sua inserção na ordem escravocrata até os dias de hoje. Permanece, mesmo muito tempo depois de abolido o trabalho escravo, o seu vínculo de dependência pessoal para com o senhor de terras. Um vínculo de tal forma arraigado no seu modo de sobrevivência que fica às vezes como idealização do passado, sempre que as condições de sua vida o levam a se desgarrar da dependência pessoal. O sentido da morada, tão bem retratado em todas as suas implicações em alguns estudos do Museu Nacional (cito especialmente o trabalho pioneiro de Moacir Palmeira, 1977), é uma das expressões desse vínculo de subserviência do morador em relação ao senhor de terras.

Acompanhando a trajetória desses homens livres e pobres, aos quais se juntam os libertos depois de 1888, o que se pode observar como traço marcante na sua fuga às situações de subserviência é sua extrema mobilidade espacial. O caráter itinerante do trabalhador rural brasileiro é, nesse sentido, talvez sua principal marca característica, desde os tempos da Colônia até a expressão maior do assalariamento rural de hoje, representado pelos trabalhadores clandestinos e pelos bóias-frias.

E nesse sentido que os grandes movimentos migratórios da população brasileira, seja do campo à cidade, seja de uma região a outra, seja na direção da fronteira agrícola, têm uma característica tão forte de um movimento de saída do atraso em direção ao progresso, à mudança. Mas, por outro lado, essa vinculação tão estreita entre a libertação dos grilhões da subserviência e a mobilidade espacial não seria um dos motivos que contribuiu para que entre nós a reforma agrária (oposto da itinerância em busca da liberdade) nunca conseguisse vingar?

Cultura política da dádiva

Quando, na passagem do século, aboliu-se a escravidão e implantou-se a República em nosso país, o domínio do liberalismo enquanto doutrina em pouco ou nada contribuiu para a instauração dos direitos elementares de cidadania. O liberalismo dos senhores de terra neste país, como bem afirma Weffort (1985), sempre foi, em essência, um privatismo conservador, cujas raízes podem ser encontradas nas velhas oligarquias da Primeira República. A cidadania continuou, portanto, tão concedida quanto antes. Pois, como afirmava um dos mais argutos observadores da cultura política brasileira,

A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos. [Holanda, 1984:119]

Nenhum autor melhor que Víctor Nunes Leal (1975) para definir o estado de compromisso da política dos governadores e da política coronelista que dominou toda a Primeira República. Esse estado de compromisso se expressava na troca de favores entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social e política dos chefes locais, principalmente dos senhores de terras. Não se tratava mais do predomínio do poder privado dominante em períodos anteriores da nossa história, sobretudo no período colonial, aquele poder que vim de caracterizar como a base de sustentação de uma forma de cidadania concedida. O compromisso coronelista era precisamente a nova forma de manifestação do poder privado, que consistia naquele compromisso, assentado ainda no latifúndio, base de sustentação do mesmo poder privado.

O coronelismo, tal como "o homem cordial" de Sergio Buarque de Holanda, foi apropriado pelo senso comum e até pela academia em sentidos muitas vezes diversos daquilo que seus autores expressaram ao definir o conceito. Em relação ao coronelismo, Lamounier, com muita propriedade, aponta algumas dessas indevidas apropriações, como e o caso em que,

invertendo perversamente a análise de Victor Nunes Leal, que estabelecera bases adequadas para uma reflexão mais rigorosa, as sobrevivências a que nos referimos, incorporadas à cultura política, ofereciam um quadro de referência que começava e terminava no indivíduo: em sua motivação particularística, em sua incapacidade de guiar-se por critérios impessoais, ou ideológicos. [Lamounier, 1985:115]

Eu diria que, menos que distorção do sentido, o que ocorreu foi uma divulgação maior das características que o próprio Nunes Leal classifica como secundárias do sistema coronelista, tais como o mandonismo, o filhotismo, o falseamento dos votos e os currais eleitorais, quando na verdade o cerne de seu conceito está no referido compromisso, que resultaria num sistema de reciprocidade em que de um lado estão os chefes municipais e os coronéis com seus currais eleitorais, e, de outro, a situação política dominante do Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial. O compromisso coronelista é, pois, o dos chefes locais, de incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições; e, da parte da situação estadual, o da concessão de carta branca ao chefe local governista, até na nomeação de funcionários estaduais do lugar. É, portanto, um compromisso que decorre não da autonomia municipal, mas da autonomia extralegal contida nele. A autonomia municipal não é nesse caso um direito da maioria do eleitorado, e sim uma dádiva do poder.

Vamos encontrar esse compromisso coronelista, revestido de novas formas e com novos atores, nos contextos mais diversos das relações de poder que subsistiram para além da Primeira República e para além até mesmo do domínio territorial, contrariando, nesse último caso, o próprio autor, que previa a total extinção do sistema coronelista logo que mudasse nossa perversa estrutura agrária por ele mesmo pintada com cores dramáticas. Dos muitos estudos e pesquisas que adotaram esse sistema coronelista como fator explicativo para as relações de poder, alguns ficaram naquelas características que Nunes Leal chamaria de secundárias ao compromisso coronelista. Outros entraram no cerne mesmo desse compromisso. Na maioria, porém, são pesquisas que se atêm à "seiva" (termo usado por ele) que alimenta o sistema coronelista, assentada na estrutura de propriedade (Queiroz, 1976; Sá, 1974; Alonso, 1985, para citar apenas alguns).

Já o estudo de Elisa Reis adota uma perspectiva de análise que igualmente utiliza a explicação do compromisso coronelista de Nunes Leal, todavia para afirmar que a burocracia estatal dos programas de governo nas regiões por ela estudadas veio em substituição aos antigos coronéis. Sua hipótese é de que "a burocratização do poder e a extensão dos benefícios sociais ao campo constituem um processo de nation-building, na medida em que fomentam uma nova identidade social em substituição àquela tradicionalmente baseada na lealdade local" (Reis,1988:203-4). Há uma coincidência na explicação de Reis e Bursztyn (1984), quando ambos se referem ao fato de permanecerem os mecanismos de clientelismo e patronagem, mudando, porém, a sua efetivação, pois os políticos locais de hoje são diretamente os representantes do Estado, quando antes havia a intermediação necessária do poder privado dos coronéis.

Técnicos da Emater, líderes sindicais, de associações comunitárias, mais recentemente as Organizações Não Governamentais - todas essas personagens apareceram no meu universo de pesquisa, a diferenciá-la, nesse ponto, das novas lideranças a que se refere Elisa Reis no contexto de sua pesquisa no interior do cerrado de Minas Gerais. Pois no contexto por ela estudado já estava consolidada nesses novos intermediários do poder uma elite local, muito embora usando ainda de velhos mecanismos vinculados ao clientelismo e à patronagem para assegurar sua posição de mando. Diversamente, os intermediários dos programas governamentais voltados para os pobres da região Nordeste, usando ainda dos mesmos e velhos mecanismos clientelistas para conseguir veicular programas à sua clientela, não chegam a constituir uma elite local e sobretudo não articulam essa posição de elite aos mecanismos eleitorais, tal como a situação descrita na pesquisa de Reis. As novas lideranças ainda conservam uma posição tutelada em relação ao antigo poder local, sobretudo quando o processo eleitoral está em jogo. Por isso o reforço à cultura da dádiva talvez seja a marca mais característica desses programas em seu mecanismo de implementação no Nordeste rural.

O que subsiste do sistema coronelista de poder? Subsiste o compromisso entre o poder público, que pode se traduzirem poder centralizado, e o poder local, que persiste à custa de favores na forma de dádivas.

O ponto que considero mais relevante da teoria de Victor Nunes Leal é sua noção de compromisso, que tem fortes implicações para a cidadania concedida. O compromisso implica sobretudo a dádiva do poder. Se antes esse poder estava assentado no domínio territorial, agora esse domínio territorial estava submisso às concessões de favores por parte da recém-instaurada República. A obtenção dos favores, por sua vez, reforçava os mecanismos da cidadania concedida, na medida em que era a subjugação de amplos contingentes de população e voto o que assegurava aos coronéis aqueles favores. A subjugação que estava na base dessa cidadania concedida, por sua vez, era herança de uma cultura política que vinha do tempo de seu monopólio do mando.

Esse mecanismo é de tal forma marcante na sociedade rural que emerge daescravidão, que a qualquer pesquisador social da atualidade chama a atenção a forma como o homem pobre do campo ainda hoje se refere ao interesse dos poderosos em que eles continuem pobres como sempre foram. A esses poderosos eles se referem, não por acaso, indistintamente, como o grande proprietário ou o político local. Nesse sentido, a pobreza do brasileiro não é um estado que tem a ver apenas com suas condições econômicas. Ela tem a ver igualmente com sua condição de submissão política e social. E o compromisso coronelista é que está por trás desse tipo de autojustificação da pobreza como sendo do interesse dos "grandes" do local, como o meio mais importante de eles obterem os favores necessários ao moto-contínuo de seu mando e de sua riqueza. A vinculação pobreza-submissão, mais que uma marca da cultura política herdada do monopólio do mando pelo domínio territorial, é uma marca desse estado de compromisso herdado da nossa República Velha.

Fetiche da igualdade social

A cultura política com a qual me ocupo no contexto deste artigo é uma espécie de cimento das relações de mando e subserviência, que em última análise se relaciona às próprias raízes da desigualdade social brasileira. Seria a continuidade de padrões de mando e subserviência associados à cultura política da dádiva, mesmo quando as bases materiais para sua existência se redefiniram no espaço social.

O sentido dessa continuidade tem a inspiração tocquevilliana de 0 antigo regime e a revolução em dois aspectos: o sentido mais fundamental de observar os elementos presentes na nossa cultura política que representam continuidade em relação aos padrões de mando e subserviência presentes em momentos pretéritos de nossa constituição social, quando o grande domínio territorial tinha enorme centralidade na determinação daqueles padrões; e também o sentido de, ao me debruçar sobre um espaço da sociedade brasileira que espelha com mais vigor traços culturais de nosso passado, poder melhor ver as nossas próprias e específicas mazelas (para além daquelas que a geração de sociólogos da qual faço parte costumava atribuir tão-somente ao capitalismo), sem perder de vista a nova sociedade.

Quero concluir esta última parte do artigo com uma reflexão que remete a dois autores, dos mais importantes para o pensamento brasileiro sobre a identidade nacional, que poderia também ser traduzida como cultura política nacional, naquele sentido acima referido, de continuidade dos padrões de mando e subserviência. Esses dois autores são Gilberto Freyre, de Casa-grande & senzala, e Sergio Buarque de Holanda, de Raízes do Brasil. Ressalvo desde logo que não serão aqui discutidas as obras desses autores, mesmo em se tratando apenas dos livros mencionados: elas serão utilizadas como referencial para pensar a questão que nomeia esta parte do capítulo, sobre o fetiche da igualdade social.

O aspecto do qual me aproprio de Casagrande & senzala, que permeia a reflexão de Gilberto Freyre em todo o livro, diz respeito à miscigenação.

O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre ensanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação. [Freyre, 1973:LX]

Miscigenação do português com a índia, do português com a negra, resgatadas pelo autor no que significaram enquanto necessidade daqueles primeiros colonizadores de aqui constituírem família. Foi, portanto, no interior da casa-grande que essas relações, as mesmas que naturalmente carregavam aquela marca sadomasoquista que já mencionei em passagem anterior deste artigo, essas relações, dizia, foram como que "adoçadas" pelo entorno canavieiro. Era essa a base social de nossa democracia: a democracia racial. Por um lado essa provocação foi forte a ponto de instigar a realização de alguns dos melhores estudos da chamada Escola Uspiana (refiro-me aqui a Fernandes, 1978; Ianni, 1972, e Cardoso, 1977), onde se destaca uma ótica radicalmente oposta na consideração da questão negra, com a tese da escravidão como uma instituição total.(2) Por outro lado, porém, foi uma obra que em muito ultrapassou a simples análise acadêmica, tornando o livro um encontro quase irresistível do brasileiro leitor com sua mais íntima brasilidade. "É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos" (Freyre, 1973:LXXV). Em que o negro aparece

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o botão dê comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo. [Freyre, 1973:283]

Democracia racial não a temos, como de resto também não podemos dizer que temos a social, pelo menos de forma consolidada, conforme aponta Weffort (1992) referindo-se à democracia sem qualificativos. A desigualdade na distribuição de renda é a marca social brasileira com a qual temos nos apresentado ao mundo, depois que o brilho efêmero dos milagres se arrefeceu com a década perdida.

Mas é isso que Gilberto Freyre chama de democracia racial, conseqüência de nossa especificidade de ser um povo originário da miscigenação de raças, é precisamente isso um dos fatores que torna tão nebulosas as nossas diferenças sociais. A democracia racial, enquanto essa gostosa mistura que passa pelos sentidos, é um importante fator mediador das nossas relações de classe.

Sergio Buarque de Holanda apresenta a mediação de classes sob uma outra óptica, embora as raízes de ambos, Sergio e Gilberto, estejam apontando para elementos que encobrem as desigualdades sociais por uma espécie de fetiche. A óptica do autor de Raízes do Brasil é á do "homem cordial", aquele cuja característica é o horror às distâncias, que tem suas raízes na esfera do íntimo, do familiar e do privado, cujas origens, por sua vez, estão relacionadas antes com a especificidade de nossa casa-grande que com traços patrimoniais herdados da cultura portuguesa. Esse homem cordial se expressa na nossa religiosidade caseira, da intimidade com os santos a que igualmente Gilberto Freyre aludira no seu ensaio aqui considerado, assim como em aspectos de nossa linguagem, como o diminutivo acrescentado aos nomes ou o uso do primeiro nome em lugar da polidez e da distância do sobrenome. Gilberto Freyre aludiria à influência negra para a constituição desse homem cordial de Sergio Buarque de Holanda, pois não foi o negro (ou a negra, melhor dizendo) quem adoçou nosso vocabulário, quem amolengou nossas relações tirando-lhes a formalidade?

Esse homem cordial aponta para um sério dilema brasileiro. Por um lado,

a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o "homem cordial". A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. [Holanda, 1984:106-7]

Por outro lado, esse mesmo homem cordial representa a nossa impossibilidade de atingir uma ordenação impessoal que permita a ruptura com os padrões privatistas e particularistas dominantes no sistema e na família patriarcal. Esse dilema não foi, a meu juízo, resolvido teoricamente pelo próprio autor do ensaio, que de certo modo se propunha fazê-lo nos dois capítulos seguintes.

A aparência do encurtamento das distâncias sociais por meio de nossa informalidade no convívio tem um fundo emotivo que permeia mesmo aquelas relações que seriam mais caracteristicamente impessoais. O autor exemplifica esse "desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo" (Holanda, 1984:109) com o depoimento de um negociante da Filadélfia que estranhou o fato de necessitar fazer amizade para poder conquistar fregueses para seu negócio. Mas qualquer um de nós é capaz de arrolar várias situações de nosso cotidiano em que esse traço de informalidade no convívio em contextos caracteristicamente impessoais pode ser observada. Assim,

a amizade, desde que abandona o âmbito circunscrito pelos sentimentos privados ou íntimos, passa a ser, quando muito, benevolência, posto que a imprecisão vocabular admita maior extensão do conceito. Assim como a inimizade, sendo pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade. [Holanda, 1984:107,- nota 157]

Esse encurtamento das distâncias sociais, expressa-o bem o tipo de consideração encontrado comumente nas falas de pessoas pobres da região Nordeste quando afirmam: "Tal pessoa não tem bondade". O "não ter bondade" dessa expressão não tem conteúdo valorativo negativo, como poderia parecer à primeira vista ao interlocutor desavisado. Não ter bondade nesse caso refere-se à ausência de formalismo e convencionalismo sociais, que são elementos definidores da cordialidade. Nesse sentido, a pessoa que não tem bondade é aquela que não se considera melhor ou "mais boa" que as outras e, portanto, não cria obstáculos à proximidade por meio de formalismos e etiquetas. A pessoa que não tem bondade é a pessoa próxima, que foi capaz de encurtar as distâncias sociais, de fato existentes, pelo seu atributo de "não ter bondade". O fetiche da igualdade é um mediador nas relações de classe que em muito contribui para que situações conflitivas freqüentemente não resultem em conflitos de fato; mas em conciliação. E onde as distâncias sociais são mais pronunciadas, quase gritantes às vezes, é onde vamos encontrar mais presente esse fetiche da igualdade, com as exceções necessárias para confirmar a regra. Tome-se, por exemplo, um meio de transporte terrestre e faça-se a aventura de viajar do Sul do país em direção ao Norte, e possivelmente vai se observar que o sentido da cordialidade vai se aprofundando à medida que a viagem progride.

NOTAS

*. Este artigo é parte do primeiro capitulo da tese de livre-docência defendida na Unicamp em maio de 1993, "Trama das desigualdades, drama da pobreza no Brasil".

1. Nenhuma descrição poderá dar uma imagem tão aproximada da forçado mando decorrente do domínio territorial quanto a figura do senhor de engenho do alto de seu alpendre ou de sua montaria quando dirigindo a palavra aos outros. Na minha primeira pesquisa de campo, a que originou a dissertação de mestrado (Suarez, 1977), fiz uma pesquisa amostrai e, para meu infortúnio, caiu na amostra estratificada da área rural uma usina de açúcar das mais antigas na localidade, a Usina Estreliana. Contava-se de seu proprietário que havia atirado à queima roupa em seis camponeses antes mesmo de ouvir qual a reivindicação que os trazia à sua presença, quando aqueles camponeses a ele se haviam dirigido no imediato pré-64, "época dos direitos" que vigorava a partir do Acordo do Campo assinado pelo governador Miguel Arraes. Já estávamos em 1973, mas o temor que esse Homem ainda inspirava ultrapassava as fronteiras de seus domínios. Ao ponto que só algum tempo depois percebi que era esse o motivo pelo qual até o motorista da Universidade Federal de Pernambuco que nos acompanhou naquela fase da pesquisa, o qual morava portanto em Recife e ia a Ribeirão (era esse o município) apenas a trabalho, postergou o quanto pôde a ida a Estreliana, inclusive tentando arranjar um bom motivo para que não fôssemos até lá entrevistar o Homem. O usineiro nos recebeu do alto do seu alpendre, duas pesquisadoras desamparadas ao pé da escadaria da casa-grande. O motorista, esse do carro não saiu. E se avultou ali na nossa presença aquela imagem do mando absoluto.

2. Em uma de minhas pesquisas de campo ocorreu-me um diálogo que nunca foi apropriado em escritos anteriores, pelo simples fato de nada ter a ver com os assuntos que eu pesquisava à época. Entrevistava uma mulher sertaneja, daquelas cujo passado não conheceu a escravidão como forma de trabalho ou como mistura étnica. Era uma mulher branca de olhos azuis, que tinha então a minha idade, 33 anos, mas que aparentava dez anos a mais pelos estragos que o intenso trabalho debaixo do tórrido sol nordestino causara a sua pele. Sua vivacidade ficava por conta daqueles bonitos olhos aos quais não passava despercebido o mundo em volta e o mundo de fora trazido pelos seus familiares que retornavam de São Paulo. Por mais de uma vez ela se referiu a "nós, negros", ao que eu quis saber por que, se ela era branca. "Brancos são vocês, os ricos", respondeu-me. "Nós aqui somos todos negros."


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sábado, 21 de março de 2009

Luiz Werneck Vianna - O pensar e o agir. Lua Nova

O PENSAR E O AGIR

LUIZ JORGE WERNECK VIANNA

36 LUA NOVA Nº 54 — 2001

Agradeço o convite e desejo uma longa vida ao CEDEC!

Desconfio que tenha sido, se não membro fundador, um de seus primeiros colaboradores – deve haver algum papel em que isso esteja registrado. Mas, existindo ou não a prova do que alego, o que importa é saudar o que se comemora hoje. O tema é Pensar o Brasil, e diante dele me sinto em situação semelhante a do meu tempo de colégio primário, quando as professoras nos exibiam gravuras – em geral, cenas bucólicas da vida rural –, exigindo de nós uma composição. Diante da gravura, estávamos obrigados a ter idéias e criar uma fabulação, tal como me sinto agora, e lembro que naqueles momentos sempre procurava me apressar para ganhar rápido o direito ao recreio e à merenda, exatamente como farei nesse instante, inclusive porque hoje é dia de festa, que, aliás, já nos espera ali fora.

Pensar o Brasil é muito complicado. Somos o quê? Somos o filho do latifúndio com a escravidão, do jacaré com a cobra d’água, um resultado dessa construção. Ainda provocando: somos o príncipe encantado nascido desse cruzamento bizarro, que, tudo pesado, deu certo. Afinal, estamos aqui, cuidando de pensar o Brasil, enquanto ele está se fazendo lá fora, não é verdade?

E sempre tivemos a consciência de que esse país tinha uma vocação expansiva, não necessariamente reconhecida no plano dos que o pensam, porque o Brasil pensa com os pés, como nos grandes movimentos migratórios que vararam e ainda varam esse continente, esse contingente imenso de 170 milhões de brasileiros que criou uma realidade fantástica, um país que é uma novidade e uma singularidade!

Adoto, nessa hora em que tantos da intelligentsia negam a vitalidade da experiência civilizatória brasileira, o tom provocativo da linguagem de ecos messiânicos, e me ponho em linha de continuidade com a tradição que vem de Gilberto Freyre a Darcy Ribeiro, que jamais perdeu de vista o que havia em nós de Rússia e de América -– Gilberto, como se sabe, em Casa Grande e Senzala chegou a nos designar como a Rússia americana. Não somos, é claro, filhos do pensamento, como tantos dizem da Alemanha de inícios do século XVIII, e não se pode entender o Brasil sem a dimensão do agir, embora de um agir muito fragmentado, difuso e disperso, como o que se faz presente nas narrativas da conquista do Oeste, de Sérgio Buarque de Holanda.

Também “andando”, freqüentemente apenas “andando”, fizemos o Brasil.

O IMPÉRIO E AS ELITES DO PENSAR

Penso que esse tema faz mais sentido hoje do que em qualquer outro momento anterior, e foi sob essa intuição que pretendi armar um caminho de aproximação à questão que nos é proposta pelo CEDEC. Para tanto, voltei a Nabuco, um Nabuco de que sempre me utilizo nesta seguinte passagem de Minha Formação: “Há duas espécies de movimento em política, um de que fazemos parte supondo estar parados, como o movimento da Terra, que não sentimos, outro o movimento que parte de nós mesmos. Na política são poucos os que têm consciência do primeiro, no entanto, esse é talvez o único que não é pura agitação”. Dessa citação extraio o registro clássico entre as elites do pensar em contraposição ao agir, o pensar como uma atividade de eleitos, daqueles que detêm o sentido da civilização e que são capazes de calcular o mundo provisório, o mundo precário, um mundo que não tem sustentação interna, condenado a soçobrar se for entregue a si mesmo.

Que mundo é esse que não tem sustentação? É o da insolidariedade social, o do latifúndio, o da fragmentação, o do clã, o mundo da parentela, em que o plano do interesse não tem como se elevar ao do pensamento.

Sobre isso versam as páginas clássicas de Maria Silvia de Carvalho Franco, referentes à atividade econômica do café e a como, a partir dela, não se chega ao plano abstrato do Estado nem a um projeto comum — não se atinge a região do pensamento. O fazendeiro, é frase dela, foi sobretudo um solitário. O interesse entre nós nasce com essa marca, a marca da solidão, da desintegração, cedendo à força simplificadora do latifúndio. Embora em sua bela análise Maria Sílvia não mobilize Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna, em ambos se reconhece a presença de um certo Nabuco, que não reconhecia no agir uma instância de fundação para o pensamento.

Pensar, portanto, na hora inaugural em que se forma o Estado-nação, é uma atividade que não tem como partir do agir, é uma atividade de eleitos, dos que detêm em si as luzes da razão e o caminho do futuro, daqueles que, tendo o pé no outro lado do Atlântico, têm a premonição de para onde devemos ir, trabalhando “nessas vastas solidões”, procurando evitar esses “pequenos movimentos” que não levam a nada, porque são pura agitação.

Entender “o movimento da Terra”... Qual movimento da Terra? A escravidão é iníqua, mas é necessária; o latifúndio é anacrônico, mas não há estrutura econômica a pôr no seu lugar... Opensar, nesse sentido, deve, inclusive, interditar certas formas do agir, que não terão credenciais para se elevar ao plano

do pensamento, como na ação plebéia dos homens com inscrição intersticial no mundo –– os tropeiros, os vendeiros, os sitiantes, seres que vivem na dimensão da necessidade. Tais agentes podem, talvez, alcançar uma certa mobilidade social, mas, submersos no sistema existente, encontram-se limitados pela rusticidade dos seus interesses, não chegam ao pensamento, não formam identidades. Não representam nem encarnam um padrão civilizatório; expressam uma materialidade sem idealidade, que somente o tempo longo, daquele tipo que não sentimos transcorrer, poderia educar para a vida civil.

Dizia Nabuco que “pertencemos à América pelo sentimento novo, flutuante do nosso espírito, e à Europa por suas camadas estratificadas. O que é leve, o que é ligeiro, o que flutua, é o sentimento novo. O que tem lastro, o que efetivamente tem uma raiz, que deve e pode prosperar, está nas suas camadas estratificadas”.

Estaríamos assim condenados, concluía ele, sob os efeitos dessa tensão, à mais terrível das instabilidades, uma vez que não haveria possibilidade de comunicação entre as elites e a massa do povo, dificultando, ou mesmo obstando, ao menos por ora, a via inglesa da incorporação deste último aos valores das primeiras. Estaríamos, aqui, em um trecho do planeta do qual a humanidade ainda não teria tomado posse, uma espécie de jardim infantil. A vasta solidão do Brasil seria, na verdade, um efeito desse lugar ainda imaturo para as aventuras do espírito. O sedimento flutuante novo estaria presente na paixão mercantil, no homem de negócios, no Brasil que se faz com os pés. E prossegue: “não quero dizer que haja duas humanidades, a alta e a baixa, e que nós sejamos desta última”. Talvez a humanidade, concluía Nabuco, “se renove um dia pelos seus galhos americanos, mas no século em que vivemos, o espírito humano está do outro lado do Atlântico. O Novo Mundo, para tudo que tem imaginação estética ou histórica, é uma verdadeira solidão”.

Esse é o Nabuco ou esse é o Império? O Império pensou assim, assim selou o afastamento entre o plano do pensar e o plano do agir. O pensar não só está separado, mas desajustado, desconfiado da empiria brasileira, especialmente do mundo mercantil. Dir-se-á: você está invocando os vendeiros, os tropeiros” — mas se eu invocar Mauá, Tavares Bastos, Rebouças — e lembro, aqui, do brilhante O Quinto Século, de Maria Alice Rezende de Carvalho —, homens dos grandes interesses americanos modernos, que nasceram e se fortaleceram no Império e que não conseguiram se alçar ao plano da atividade pública, ao plano abstrato do Estado, ao plano do pensamento e de um pensamento organizador? Qual era a condição para que pensamento e ação pudessem convergir?

Oliveira Vianna, em 1918, em Populações Meridionais..., entendeu isso melhor do que ninguém. A possibilidade do pensar e do agir convergirem estava na questão agrária, na possibilidade dos intelectuais do liberalismo democrático e dos matutos do Centro-Sul se encontrarem em torno de uma reforma agrária radical, idéia que lhe parecia extraordinariamente ameaçadora, porque traria consigo a revolução democrática, e com ela uma fragmentação política em escala mais grave que a do período da Regência, importando o abandono e a perda da grande obra do pensamento do Império, que teria sido a de constituir a unidade nacional. Para ele a unidade nacional ou seria fruto do pensar ou não teria como se realizar, resultado que foi do papel criativo de uma paixão, da vocação de uma elite territorialista, ibérica, não tendo como encontrar os seus fundamentos na ação de homens apenas treinados em uma vida mercantil incipiente. A comparação em Oliveira Vianna é recorrente: não nascemos como a federação norte-americana, unificada por baixo, pela integração econômica, que, entre nós, mal estaria no horizonte.

Somos uma federação porque fomos uma unidade construída no plano do pensamento e imposta pela política –– o Brasil seria congenitamente metafísico. Enquanto que a busca da federação, como no Tavares Bastos de A Província, apontaria para o caminho do agir, com todos os riscos da fragmentação admitidos pelo publicista do Império, nós somente somos a unidade porque aqui presidiu o caminho do pensar. São realidades inamovíveis! Não temos como deslocar as marcas do latifúndio que estão na raiz da nossa formação, base da nacionalidade, dizia Oliveira Vianna. Não vamos deslocar as marcas da escravidão que sedimentaram a nossa específica sensibilidade e o mundo dos nossos sentimentos, como interpretaram o Nabuco de Massangana e o Gilberto Freyre de Casa Grande e Senzala. O Brasil não suporta rupturas, sob pena de desintegração, porque a matriz do interesse não lhe concede sustentação.

Caetano Veloso, em “Noites do Norte”, uma belíssima composição, não à toa celebra Nabuco musicando a sua prosa, celebrando a sensibilidade da população submetida à escravidão como uma marca permanente do Brasil.

O pensar e o agir, portanto, nascem entre nós com essa antinomia.

E mais: apostar no agir era, por exemplo, apostar na Regência, cuja inclinação pela livre iniciativa individual e pela descentralização nos teria aproximado da secessão. A cena de fabulação dos estadistas do Império, recriadores em solo americano do territorialismo ibérico, como na bela demonstração de Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício, à base da experiência dos movimentos autonomistas da Regência, era o de que a primazia do agir levaria à balcanização do país. Sem dúvida, para eles, o preço

da unidade era o da restrição à liberdade. Outra marca inamovível – a federação como obra do Centro político.

A MODULAÇÃO REPUBLICANA

A República introduz uma modulação nessa relação entre o pensar e o agir. Em primeiro lugar, porque a República promove o interesse, cuja matriz se encontra em São Paulo –- a República paulista. Está aqui o Renato Lessa com o seu importante A Invenção Republicana, e, para encurtar razões, penso que a República é, tal como a Independência, mais uma revolução encapuzada, como há tempos sustentou Regis Andrade em tese de doutorado, infelizmente ainda inédita. Enfatizar o tema dos “bestializados” no evento da proclamação da República a fim de destacar a recepção passiva da população a ele, se contém, é claro, a sua verdade, pode conduzir ao ocultamento do que o pacto republicano importou em termos de mudanças político-sociais desencadeadas a partir dele. Mudanças que foram sentidas, no seu alcance maior, na passagem dos anos 10 para os anos 20, com as greves de 17, as greves de 18 e 19, sobretudo com a rebelião tenentista de 22, mais tarde radicalizada sob a forma de um movimento permanente com a Coluna Prestes, naquela extraordinária coincidência que levou a que, nesse mesmo ano, fosse formado o Partido Comunista Brasileiro e organizada a Semana de Arte Moderna. Data daí a tentativa de apropriação por parte da matriz do interesse e do agir do que poderia elevá-la ao plano do pensamento. Qual é o movimento que domina a intelligentziada época? A ida ao Brasil! Os sanitaristas, Oswaldo Cruz, os sertanistas, Rondon, os artistas, Mário de Andrade, Villa lobos, a literatura regional, os tenentes... Descortinar o lugar de onde se pudesse extrair uma estética, uma imaginação, um pensamento singular. A

Coluna Prestes vagueia pelo Brasil sem pensamento, como uma mula sem cabeça, passando pelo latifúndio sem ter uma palavra de ordem de revolução agrária –- ver, por exemplo, o excelente relato da Coluna realizado por Anita Leocádia Prestes. Em todos, o que se tem é um sentimento que ainda não consegue se formalizar em idéia, na expectativa de que a exposição à matéria-prima do Brasil em estado bruto produza o Fiat que leve ao conhecimento, ao pensar. Intelligentzia posta em movimento, a mobilidade social que alarga o espaço da razão brasileira, olhando, escrutinando, selecionando temas para a saga a ser ainda construída, como no caso do Mário, de Villa, da Coluna. Ida ao Brasil, ida ao povo –– não se trata mais do agir mercantil, mas de um agir orientado para a reflexão e para a produção de um pensamento.

Essa promissora década é bloqueada, como se sabe, pela Revolução de 30, que dá partida a uma intervenção modernizadora e autoritária sobre a sociedade, com elementos de garantia de direitos, de elevação das camadas populares, muito especialmente dos trabalhadores urbanos, mas que, em contrapartida, lhes suprime a autonomia de suas associações e restringe, em geral, as liberdades civis e públicas de todo o corpo social. Pensar e agir, no contexto da institucionalidade corporativa imposta a partir da década de 30, vai importar uma racionalização dos interesses, realizada pela mediação dos intérpretes políticos do Estado-nação, no sentido de que eles se orientem para fins de natureza pública, tal como entendidos por aqueles intérpretes, detentores da representação da razão. O interesse e o agir estão legitimados, desde que subsumidos a um pensamento que os organize por cima. Exemplar disso é o artigo 135 da Carta de 1937, a “Polaca”, ao prescrever que “na iniciativa individual, no poder de creação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representado pelo Estado” (grifos do autor). Sobre o interesse, um árbitro racional. E se ele é base material para o pensar, não será, contudo, a partir dele, e nem dos personagens que o portam, que o pensamento deve realizar a sua trajetória brasileira.

UMA FELIZ CONVERGÊNCIA...

Findo o Estado Novo, um novo capítulo na relação entre o pensar e o agir, o período entre 1945 e 1964, momento em que, de verdade, o agir pretende se constituir em pensamento. Vou ler um trecho que sempre cito em minhas análises sobre a política moderna brasileira, extraído da Declaração de Março de 1958 do Partido Comunista Brasileiro: “O caminho pacífico da revolução brasileira é possível em virtude de fatores como a democratização crescente da vida política, o ascenso do movimento operário e o desenvolvimento da frente única nacionalista em nosso país. O povo brasileiro pode resolver pacificamente os seus problemas básicos com a acumulação gradual mas incessante de reformas profundas e conseqüentes, na estrutura econômica e nas instituições políticas, chegando-se até à realização completa das transformações radicais colocadas na ordem do dia pelo próprio desenvolvimento

econômico/social da nação”.

Na aparência, uma volta a Nabuco, certamente que não ao Nabuco do pensar refratário ao agir,e que o nega a fim de que o pensamento se manifeste na sua pureza. Para ele, a civilização nos chegaria como obra do tempo, processo gradual e molecular, como os que nos chegam, silenciosos e quase imperceptíveis, do movimento da Terra, enquanto seus valores e ideais, ainda não generalizáveis, seriam cultivados pelas elites dos homens públicos, toda uma modelagem vazada em termos de uma necessária oposição entre os planos do ideal e os do real. A volta a Nabuco é apenas aparente na medida em que a Declaração de 1958 afirma uma relação de feliz convergência entre eles: a democratização crescente da vida política, o ascenso do movimento operário e o desenvolvimento da frente única nacionalista no país indicariam, no cerne do processo em curso, algo de intrinsecamente progressista, de democrático, significando a presença de um elemento transformístico, de caráter positivo, isto é, atuando a favor das forças da mudança social, como se inscrito no próprio “movimento da Terra”. Assim, se esse era o resultado que o pensamento produzia sobre o estado de coisas efetivamente existente no país, agir significava dirigir o movimento da Terra, que se evidenciava depois de desvendado por meio de uma operação intelectual.

Afinal, tinha-se descoberto, a contrapelo de Nabuco, uma relação de homologia entre pensar e agir, em que cada termo servia ao outro. E a afirmação clássica, que deve ser de 1961, de um dos grandes membros da intelligentzia da época, Álvaro Vieira Pinto, parodiando Lenin, que sem teoria do desenvolvimento não há desenvolvimento, pretendia significar a possibilidade de uma aproximação feliz entre o pensar e o agir, abrindo para a Nação, consciente da sua circunstância, o caminho para a construção da sua identidade. (Vale notar que, tendo mobilizado o Vieira Pinto, em Consciência e realidade nacional, de óbvia inspiração em Heidegger, ocorreu-me que, coincidentemente ou não, o filósofo alemão, em Que significa pensar?, se faz as mesmas perguntas que servem à organização dessa conferência. A propósito, sobre a obra magna de Vieira Pinto vale citar, por seu interesse, a recente tese de doutoramento, defendida no IUPERJ, de Norma Côrtes).

Era possível, pois, no período compreendido entre os anos de 45 e 64, conceber o interesse, particularmente o das grandes maiorias, como base de assentamento para a composição da idéia de Nação e para uma reforma democrático-popular do Estado. Um pensar que não toma distância do agir a fim de evitar a perda do seu mandato civilizatório, e nem o aceita apenas como matéria-prima administrada para os propósitos da modernização econômica, mas que é concebido a partir do interesse das grandes maiorias e da sua elevação em propósitos ético-morais.

... E UMA INFAUSTA SEPARAÇÃO

Isso é o que se perde com o golpe de 1964, que se, de um lado, vai importar na valorização do agir na esfera isolada da economia, um agir, portanto, puramente instrumental, cujos símbolos são a mobilização dos setores subalternos mais pobres do campo para o garimpo de Serra Pelada e para a colonização da Transamazônica, de outro, vai reduzir, pela violência política, a sociedade à imobilidade, mantendo-a em estado de infantilização cívica. Vivemos hoje sob a influência direta disso, de um intenso processo de modernização econômica que separou o agir do pensar, o público do privado, e que produziu o efeito de, no lugar de cidadãos, termos máquinas desejantes, os interesses mal compreendidos proclamados como virtudes necessárias a uma boa adaptação ao mundo do mercado, traços nefastos que sobreviveram à ditadura e que não serão fáceis de deslocar, em particular quando se considera que os novos seres da modernidade brasileira começam a sua história sem a memória, com freqüência porque a rejeitam liminarmente, das lutas e das construções intelectuais do passado.

Às ciências sociais brasileiras coube, por razões que não importam considerar aqui, o papel da produção de uma narrativa e de uma interpretação do país, servindo à sociedade com diagnósticos sobre a natureza do estado de coisas existentes, especialmente à época da ditadura militar. Os recentes avanços na institucionalização do trabalho científico não têm implicado, como muitos supunham, a perda desse veio, que, ao contrário, tem encontrado um número, cada vez maior, de praticantes entre os cientistas sociais. Decerto que dos intelectuais de hoje não se espera a pretensão de se fazerem substitutivos dos partidos políticos e dos movimentos sociais, mas deles se pode legitimamente esperar que honrem as tradições da USP e do ISEB dos anos 50 e 60, que sempre foram as de conceber um destino de afirmação para os brasileiros e aproximar a intelligentzia do seu povo. Os 25 anos do CEDEC nos pedem um compromisso como cientistas sociais, que interpreto no sentido de que devemos animar a saga dos brasileiros em continuar tentando construir uma sociedade livre, justa e fraterna, defendendo a sua história e seus valores dos que querem nos condenar a uma forma de pensar – a do pensamento único, que certamente não tem levado em conta a nossa forma de agir.