Raízes da desigualdade social na cultura política brasileira
Teresa Sales
Seguem-se a este artigo os comentários de Juarez Brandão Lopes, Francisco de Oliveira, Vera Telles e da própria autora.
Este artigo trata da questão de nossa desigualdade social, que tem sido o cartão de apresentação do Brasil ao mundo, enquanto a nossa moeda para uso interno se traduz no fetiche da igualdade. Ao adentrar nas raízes da desigualdade social na cultura política brasileira, tentei na verdade traçar um retrato da construção de nossa cidadania, que teve sua expressão primeira naquilo que nomeei como cidadania concedida. No âmbito da sociedade escravocrata os homens livres e pobres, sujeitos ao favor dos senhores de terras, amesquinharam-se na sombra de suas dádivas. A cultura política da dádiva sobreviveu ao domínio privado das fazendas e engenhos coloniais, sobreviveu à abolição da escravatura, expressou-se de uma forma peculiar no compromisso coronelista e chegou até nossos dias.
Abordo as raízes dessa cultura da dádiva, que é a expressão política de nossa desigualdade social, mediante a relação de mando/subserviência cuja manifestação primeira se deu no âmbito do grande domínio territorial que configurou a sociedade brasileira nos primeiros séculos de sua formação. A dádiva chega a nossa res publica substituindo os direitos básicos de cidadania, que não nos foram outorgados pelo liberalismo caboclo que aqui aportou na passagem do século. E, nessa medida, a saída para as relações de mando/ subserviência que estão na base da cultura da dádiva, contribuindo para aprofundar nossas desigualdades, tem se dado em duas direções: em situações de fuga ou itinerância por parte do trabalhador rural e das populações pobres em geral, do que a história das migrações internas no Brasil é o exemplo mais contundente; e na reificação em todas as situações, dos que permanecem no local de origem ou dos que buscam saída na itinerância, do fetiche da igualdade. O fetiche da igualdade, para a definição do qual me vali dos conceitos "democracia racial" de Gilberto Freyre e "homem cordial" de Sergio Buarque de Holanda, são os fatores mediadores de nossas relações de classe, que têm ajudado a dar uma aparência de encurtamento das distâncias sociais, contribuindo dessa forma para que situações de conflito freqüentemente não resultem em conflito de fato, mas em conciliação.
A cidadania concedida, que está na gênese da construção de nossa cidadania, está vinculada, contraditoriamente, à não-cidadania do homem livre e pobre, o qual dependia dos favores do senhor territorial, que detinha o monopólio privado do mando, para poder usufruir dos direitos elementares de cidadania civil. O rompimento com essa cidadania concedida dar-se-ia apenas com o amplo processo de expulsão do trabalhador rural para fora do grande domínio territorial nos idos dos anos de 1960. À abolição da escravatura, que poderia ser um marco para esse rompimento, seguiu-se o compromisso coronelista, ou, mais genericamente, os mecanismos de patronagem e clientelismo que marcaram toda a nossa Primeira República, contribuindo para perpetuar as bases sociais da cidadania concedida.
A cultura política de que trato caracteriza-se, diferentemente do enfoque em geral adotado nos estudos sobre cultura política e democracia, como uma espécie de cimento das relações de mando e subserviência, que fornece a base para a continuidade de tais relações, as quais, por sua vez, são associadas à cultura da dádiva. O Tocqueville que declarava ter escrito sobre seu país sem preconceitos, mas não sem paixão, dar-me-ia uma pista para observar os elementos presentes em nossa cultura política que representam continuidade em relação aos padrões de mando e subserviência de nosso passado. Um desses elementos de continuidade diz respeito à nossa estrutura agrária assentada no grande domínio territorial, que continuou praticamente intocada em vários pactos de poder. A análise desses elementos de continuidade na nossa cultura política mostrou-se relevante para o debate, que se pretende atual, da questão da cidadania e de suas relações com a pobreza.
Nesse sentido, acrescentaria ainda a estas. notas introdutórias que, como elemento subjacente às análises aqui. realizadas, onde aparece mais explicitamente um diálogo com alguns clássicos de nossa historiografia, existe uma pesquisa de campo em comunidades rurais beneficiárias de programas governamentais co-financiados pelo Banco Mundial na região Nordeste. Essa pesquisa foi feita no Cebrap durante o período de 1987 a 1989 e parte do ano de 1990. Realizei-a em várias idas a campo, quando entrevistei trabalhadores rurais, mediadores de programas governamentais, líderes comunitários e técnicos responsáveis pela implementação dos programas.
Cidadania concedida
Conforme enunciado no próprio título, este artigo aborda as raízes da desigualdade social na cultura política brasileira. Se tivesse de definirem poucas e curtas palavras o significado desse enunciado, diria que no nosso país ou bem se manda ou bem se pede. Está no simples conteúdo desses dois verbos o significado mais profundo de nossa cultura política do mando e da subserviência.
O tema do mando na ciência política está mais comumente associado ao seu complemento natural, expresso na obediência. Assim, define Weber o poder como "a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade". Mais preciso, porém, do que o conceito de poder para esse autor, é o de dominação, por ele definida como "a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis" (Weber, 1991:33). Quando me refiro a subserviência e não obediência, estou na verdade redefinindo o outro pólo da alteridade em termos do pedir, para além do obedecer.
O pedir, para além do obedecer, que faz parte do cerne da cultura política da dádiva, implica necessariamente um provedor forte. Ao lado do legado escravista, esse provedor forte, a respeito do qual há um consenso entre os vários autores que se debruçaram sobre nossa herança colonial, foi o domínio territorial. Seja ele expresso como sesmaria, como latifúndio escravocrata ou como grande propriedade, o aspecto que aqui quero resgatar é o de domínio rural ou domínio territorial, ou seja, o que implica a contrapartida do favor, da dádiva, do mando e subserviência.
Da imensa literatura sobre o assunto, tomo alguns autores hoje clássicos na nossa historiografia social para situar aspectos do domínio territorial enquanto provedor da dádiva, começando por Oliveira Vianna. Passando ao largo de suas observações pouco fundadas sobre o caráter mais ou menos aristocrático de nossos latifundiários, o aspecto relevante para os propósitos aqui assinalados é aquele em que ele acentua a centralidade do latifúndio na nossa própria constituição enquanto nação: "nós somos o latifúndio"; em quase-oposição ao luso colonizador que, esse sim, é rural (Vianna, 1987:48). Sergio Buarque de Holanda desenvolve essa idéia ao tratar igualmente de nossas raízes rurais:
Em realidade, só com alguma reserva se pode aplicar a palavra agricultura: aos processos de exploração da terra que se introduziram amplamente no país com os engenhos de cana [...] A verdade é que a grande lavoura, conforme se praticou e ainda se pratica no Brasil, participa, por sua natureza perdulária, quase tanto da mineração quanto da agricultura. Sem braço escravo e terra farta, terra para gastar e arruinar, não proteger ciosamente, ela seria irrealizável; [...] Não foi, por conseguinte, uma civilização tipicamente agrícola o que instauraram 'os portugueses no Brasil com a lavoura açucareira. [Holanda, 1984:18)
O latifúndio tem sido estudado una nossa historiografia sobretudo pelos seus aspectos econômicos. Trata-se nesse caso do latifúndio monocultor voltado para a exportação e baseado no trabalho escravo, cujos principais produtos para exportação, em sucessivos períodos, foram as culturas da cana-de-açúcar e do café (Prado Jr., 1972; Andrade, 1973; Furtado, 1964). No âmbito da cultura canavieira, Gilberto Freyre (1973) destacou dois importantes aspectos do latifúndio: sua responsabilidade .por males que antes dele eram atribuídos à mistura de raças, tais como as más condições de saúde e perturbações do crescimento da população, e outro aspecto com esse relacionado, que era o lado esterilizador do latifúndio quanto à diversidade de cultivos, resultando em péssimas condições de alimentação da população.
Para Oliveira Vianna, a centralidade do latifúndio residia menos nas suas características propriamente econômicas que nas marcas de prestígio e poder do senhor rural. Tal idéia já havia sido expressada pelo nosso "Maquiavel dos Senhores de Engenho" quando afirmava que
O ser Senhor de Engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual deve ser, homem de cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho, quanto proporcionalmente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino. [Antonil, 1982:75, grifos meus]
Outro aspecto da centralidade do domínio rural assinalado por Oliveira Vianna era sua função simplificadora, pelo que ele entendia as características autárquicas do latifúndio, quase anulando a formação da classe comercial, da classe industrial e das corporações urbanas; e sobretudo a formação do que ele denomina clã rural, chefiado pelos senhores de engenho e donos de latifúndios cafeeiros.
Contraditoriamente, os mesmos senhores rurais que estão na base do incomensurável poder privado que foi a marca inconteste de nossa formação histórica até o advento da República, esses mesmos senhores que controlam os aparelhos de justiça, os delegados de polícia e as corporações municipais, são eles que amparam o homem comum de todos esses controles sob a proteção do clã. Oliveira Vianna passa ao largo dessa contradição, situando apenas a segunda parte da equação, quando afirma que o homem que não tem latifúndio é permanentemente indefeso e nenhuma instituição de caráter social o ampara.
Essa função tutelar só a exerce, e eficientemente, o fazendeiro local. Só à sombra patriarcal desse grande senhor de engenhos, de estâncias, de cafezais, vivem o pobre e o fraco com segurança e tranqüilidade. [Vianna, 1987:142)
O latifúndio escravocrata, monocultor e esterilizador da diversidade social (ou divisão social do trabalho, em termos mais modernos) estava, portanto, intrinsecamente vinculado ao poder privado dos senhores de terras. A servidão do trabalho escravo era sem dúvida um lastro fundamental para esse poderio. (Mais um aspecto ilustrado pelo nosso Maquiavel rural: "Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo com que se há com eles, depende tê-los bons ou maus para o serviço" [Antonil,1982:89]). Porém, a relação escravocrata em si não tem a propriedade de definir o poder do senhor de terras nos seus domínios, já que o escravo enquanto tal não passa de uma peça comprada e vendida como qualquer instrumento de trabalho. Daí a continuação da recomendação no mesmo parágrafo citado anteriormente:
Por isso, é necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas. E porque comumente são de nações diversas, e uns mais boçais que outros e de forças muito diferentes, se há de fazer a repartição com reparo e escolha, e não às cegas. [Antonil, 1982:89]
O poder do senhor territorial se concretiza não propriamente em relação àqueles que pelo próprio estatuto de escravos com ele se relacionam na qualidade de um bem possuído e sobre os quais o senhor põe e dispõe à sua vontade e arbítrio, mas em relação à infinidade de agregados que, Brasil afora, foram assumindo relações de trabalho e denominações tão diversas quantas são as nossas diversidades regionais. É sobre esses agregados que Roberto Schwarz (1973) constrói a categoria do favor como a mediação fundamental entre a classe dos proprietários de terras e os "homens livres". São os que buscam a proteção do senhor de terras, chefe do clã na acepção de Oliveira Vianna, contra a anarquia branca.
Os autores que analisam o período pré-abolicionista são unânimes em afirmar o impasse em que se colocavam esses "homens livres", cuja própria sobrevivência física e social passava pelo grande domínio. Ao ponto em que aquela arguta observação de Louis Couty, de que "A situação funcional dessa população pode se resumir em uma palavra: o Brasil não tem povo" (apud Freyre, 1973:35), é sistematicamente endossada por quantos quiseram entender o dilema do homem livre (Mercadante, 1965; Vianna, 1987; Duarte, 1965). Ao situar a famosa frase de Couty, Gilberto Freyre se reporta também a Joaquim Nabuco, que repetiria dois anos depois, em 1883:
São milhões que se acham nessa condição intermédia, que não é o escravo, mas também não é o cidadão [...] Párias inúteis vivendo em choças de palha, dormindo em rede ou estrado, a vasilha de água e a panela seus únicos utensílios, sua alimentação a farinha com bacalhau ou charque; e "a viola suspensa ao lado da imagem". [Freyre, 1973:35-6]
Oliveira Vianna explicitaria as características de tal cidadania, que aqui tomo a liberdade de nomear como cidadania "concedida", desses homens livres:
O que os quatro séculos da nossa evolução lhe ensinam é que os direitos individuais, a liberdade, a pessoa, o lar, os bens dos homens pobres só estão garantidos, seguros, defendidos, quando têm para ámpará-los o braço possante de um caudilho local. Essa íntima convicção de fraqueza, de desamparo, de incapacidade se radica na sua consciência com a profundeza e a tenacidade de um instinto. [Vianna, 1987:146-7]
Cidadania concedida. Uma contradição em termos, assim como o é a bem achada expressão de Santos (1978): "sociedade liberal escravista". O conceito de cidadania concedida tem aqui o propósito de realçar características importantes da nossa cidadania pretérita e atual, e que são, ao mesmo tempo, parte constitutiva da construção de nossa cidadania. Pois aqui, como alhures, a cidadania não é alguma coisa que nasce acabada, mas é construída pela adição progressiva de novos direitos àqueles já existentes (Marshall, 1967). A cidadania concedida está na gênese da construção de nossa cidadania. Isso significa que os primeiros direitos civis necessários à liberdade individual - de ir e vir, de justiça, direito à propriedade, direito ao trabalho - foram outorgados ao homem livre, durante e depois da ordem escravocrata, mediante a concessão dos senhores de terras. Essa dependência da população livre do Brasil escravocrata para com os senhores de terras é que dava aos observadores argutos aquela impressão de que o Brasil não tinha povo.
Ao diagnóstico terrível de que o Brasil não tem povo, não faltaram propostas de solução baseadas no contexto daquele Brasil tomado enquanto país essencialmente agrícola. Haveria que criar uma classe média rural como base social para a constituição de seu povo, proposição que marcou indelevelmente toda a discussão posterior que em vários momentos de nossa história acirrou exaltados ânimos contra a reforma agrária.
Gilberto Freyre acrescentou um outro aspecto para a compreensão dessa alteridade do mando/subserviência, o que foi possível graças ao método por ele utilizado para escrever sua obra maior, baseado na compreensão e na empatia, onde
A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo; de sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido a religião de família e influenciado pelas crendices da senzala [...] Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social. [Freyre, 1973:LXXV]
É nesse contexto da vida íntima que esse autor encontra um ingrediente a mais para o mando.
Transformava-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos e canários – tantas vezes manifestado pelo senhor de engenho quando homem-feito; no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho [...] Mas esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica; têm-se feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político. [Freyre, 1973:51]
Já Sergio Buarque de Holanda busca nas nossas raízes ibéricas os fundamentos para as relações de mando e subserviência. Tais fundamentos estariam assentados na cultura da personalidade que marcou, tanto na Espanha e em Portugal como no Brasil, a falta de coesão e de princípio de hierarquia na vida social.
Nas nações ibéricas, à falta dessa racionalização da vida, que tão cedo experimentaram algumas terras protestantes, o princípio unificador foi sempre representado pelos governos. Nelas predominou, incessantemente, o tipo de organização política artificialmente mantida por uma força exterior, que, nos tempos modernos, encontrou uma das suas formas características nas ditaduras militares [...] À autarquia do indivíduo, à exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: à renúncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior. Por isso mesmo que, rara e difícil, a obediência aparece algumas vezes, para os povos ibéricos, como virtude suprema entre todas. E não é estranhável que essa obediência - obediência cega, e que difere fundamente dos princípios medievais e feudais de lealdade-tenha sido até agora, para eles, o único princípio político verdadeiramente forte. A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares. [Holanda, 1984:9 e 11]
A subserviência encontra menos explicação na bibliografia do que o mando, muito embora ambos sejam pólos da mesma alteridade. Quando Oliveira Vianna se refere à constituição do clã rural, que para ele é a concretização desses vínculos de subserviência, aponta para fatores de ordem política (a necessidade de proteção dos homens livres contra aquilo que chamou anarquia branca) e não para fatores de ordem econômica. Isso porque seu pressuposto é o de que, do ponto de vista econômico, justamente ao contrário, a tendência era no sentido da separação das classes rurais (Vianna, 1987:144). Maria Sylvia de Carvalho Franco, cuja contribuição maior reside justamente em concentrar seu trabalho nesse outro pólo da alteridade, os "homens livres na ordem escravocrata", parte de igual pressuposto para explicar a dominação.
O outro caminho trilhado pelo homem pobre teve seu ponto de partida no caráter prescindível desse sujeito na estrutura sócio-econômica. Essa existência dispensável levou-o, em última instância, a conceber sua própria situação como imutável e fechada, na medida em que as suas necessidades mais elementares dependeram sempre das dádivas de seus superiores. Assim, em sua vida de favor, a dominação foi experimentada como uma graça e ele próprio reafirmou, ininterruptamente, a cadeia de lealdades que o prendia aos mais poderosos. Desprovida de marcas exteriores, sua sujeição foi suportada como benefício recebido com gratidão e como autoridade voluntariamente aceita, fechando-se a possibilidade de ele sequer perceber o contexto de domínio a que esteve circunscrito. [Franco, 1983:104, grifos meus]
A busca das raízes da desigualdade social na cultura política brasileira me fez percorrer algumas interpretações seminais para a relação de mando e subserviência que conduzem a um tipo de cidadania que nomeei como cidadania concedida. Essa cidadania concedida, voltando aos argumentos utilizados no início deste artigo, tem a ver com o próprio sentido da cultura política da dádiva. Os direitos básicos à vida, à liberdade individual, à justiça, à propriedade, ao trabalho; todos os direitos civis, enfim, para o nosso homem livre e pobre que vivia na órbita do domínio territorial, eram direitos que lhe chegavam como uma dádiva do senhor de terras.
Ao monopólio do mando associaram-se níveis de violência cotidiana nas relações do senhor, não apenas com as "peças" de sua propriedade no interior das fazendas e engenhos. Essa violência era até legitimada pelo próprio estatuto da escravidão, regulamentada na tradição e costumes pelos três pês, pau, pão e pano, ao que Antonil ajuntava:
E posto que comecem mal, principiando pelo castigo que é o pau, contudo, prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada, ou levantada; e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos, de que se não usa nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo que de meia dúzia de escravos, pois o cavalo é servido, e tem quem lhe busque capim, tem pano para o suor e sela e freio dourado. [Antonil, 1982:91]
Ao monopólio do mando associavam-se níveis de violência que se estendiam para fora do domínio rural, em relação a toda a população branca e livre que vivia de suas dádivas.(1)
A tese de Maria Sylvia (Franco, 1983) retrata situações de violência desses homens livres na ordem escravocrata que correspondem a todo um sistema de valores centrados na coragem pessoal. É sua forma de expressão em face da violência do mando e da subjugação imperante no domínio territorial ao qual eles estão submetidos. A violência do bando de Virgulino Ferreira, Lampião, e do cangaceirismo que se alastrou em várias regiões do Nordeste num certo momento de nossa história republicana, também são testemunhos dessa reciprocidade de violência. E possivelmente a violência que marca ainda hoje os conflitos de terra no Brasil tem a ver com essas raízes no monopólio do mando e a cultura da dádiva a ele relacionada.
O drama do mando e subserviência, que funda uma cidadania apenas concedida como dádiva ao homem livre e pobre, sofreu mudanças no tempo desde a sua inserção na ordem escravocrata até os dias de hoje. Permanece, mesmo muito tempo depois de abolido o trabalho escravo, o seu vínculo de dependência pessoal para com o senhor de terras. Um vínculo de tal forma arraigado no seu modo de sobrevivência que fica às vezes como idealização do passado, sempre que as condições de sua vida o levam a se desgarrar da dependência pessoal. O sentido da morada, tão bem retratado em todas as suas implicações em alguns estudos do Museu Nacional (cito especialmente o trabalho pioneiro de Moacir Palmeira, 1977), é uma das expressões desse vínculo de subserviência do morador em relação ao senhor de terras.
Acompanhando a trajetória desses homens livres e pobres, aos quais se juntam os libertos depois de 1888, o que se pode observar como traço marcante na sua fuga às situações de subserviência é sua extrema mobilidade espacial. O caráter itinerante do trabalhador rural brasileiro é, nesse sentido, talvez sua principal marca característica, desde os tempos da Colônia até a expressão maior do assalariamento rural de hoje, representado pelos trabalhadores clandestinos e pelos bóias-frias.
E nesse sentido que os grandes movimentos migratórios da população brasileira, seja do campo à cidade, seja de uma região a outra, seja na direção da fronteira agrícola, têm uma característica tão forte de um movimento de saída do atraso em direção ao progresso, à mudança. Mas, por outro lado, essa vinculação tão estreita entre a libertação dos grilhões da subserviência e a mobilidade espacial não seria um dos motivos que contribuiu para que entre nós a reforma agrária (oposto da itinerância em busca da liberdade) nunca conseguisse vingar?
Cultura política da dádiva
Quando, na passagem do século, aboliu-se a escravidão e implantou-se a República em nosso país, o domínio do liberalismo enquanto doutrina em pouco ou nada contribuiu para a instauração dos direitos elementares de cidadania. O liberalismo dos senhores de terra neste país, como bem afirma Weffort (1985), sempre foi, em essência, um privatismo conservador, cujas raízes podem ser encontradas nas velhas oligarquias da Primeira República. A cidadania continuou, portanto, tão concedida quanto antes. Pois, como afirmava um dos mais argutos observadores da cultura política brasileira,
A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos. [Holanda, 1984:119]
Nenhum autor melhor que Víctor Nunes Leal (1975) para definir o estado de compromisso da política dos governadores e da política coronelista que dominou toda a Primeira República. Esse estado de compromisso se expressava na troca de favores entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social e política dos chefes locais, principalmente dos senhores de terras. Não se tratava mais do predomínio do poder privado dominante em períodos anteriores da nossa história, sobretudo no período colonial, aquele poder que vim de caracterizar como a base de sustentação de uma forma de cidadania concedida. O compromisso coronelista era precisamente a nova forma de manifestação do poder privado, que consistia naquele compromisso, assentado ainda no latifúndio, base de sustentação do mesmo poder privado.
O coronelismo, tal como "o homem cordial" de Sergio Buarque de Holanda, foi apropriado pelo senso comum e até pela academia em sentidos muitas vezes diversos daquilo que seus autores expressaram ao definir o conceito. Em relação ao coronelismo, Lamounier, com muita propriedade, aponta algumas dessas indevidas apropriações, como e o caso em que,
invertendo perversamente a análise de Victor Nunes Leal, que estabelecera bases adequadas para uma reflexão mais rigorosa, as sobrevivências a que nos referimos, incorporadas à cultura política, ofereciam um quadro de referência que começava e terminava no indivíduo: em sua motivação particularística, em sua incapacidade de guiar-se por critérios impessoais, ou ideológicos. [Lamounier, 1985:115]
Eu diria que, menos que distorção do sentido, o que ocorreu foi uma divulgação maior das características que o próprio Nunes Leal classifica como secundárias do sistema coronelista, tais como o mandonismo, o filhotismo, o falseamento dos votos e os currais eleitorais, quando na verdade o cerne de seu conceito está no referido compromisso, que resultaria num sistema de reciprocidade em que de um lado estão os chefes municipais e os coronéis com seus currais eleitorais, e, de outro, a situação política dominante do Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial. O compromisso coronelista é, pois, o dos chefes locais, de incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições; e, da parte da situação estadual, o da concessão de carta branca ao chefe local governista, até na nomeação de funcionários estaduais do lugar. É, portanto, um compromisso que decorre não da autonomia municipal, mas da autonomia extralegal contida nele. A autonomia municipal não é nesse caso um direito da maioria do eleitorado, e sim uma dádiva do poder.
Vamos encontrar esse compromisso coronelista, revestido de novas formas e com novos atores, nos contextos mais diversos das relações de poder que subsistiram para além da Primeira República e para além até mesmo do domínio territorial, contrariando, nesse último caso, o próprio autor, que previa a total extinção do sistema coronelista logo que mudasse nossa perversa estrutura agrária por ele mesmo pintada com cores dramáticas. Dos muitos estudos e pesquisas que adotaram esse sistema coronelista como fator explicativo para as relações de poder, alguns ficaram naquelas características que Nunes Leal chamaria de secundárias ao compromisso coronelista. Outros entraram no cerne mesmo desse compromisso. Na maioria, porém, são pesquisas que se atêm à "seiva" (termo usado por ele) que alimenta o sistema coronelista, assentada na estrutura de propriedade (Queiroz, 1976; Sá, 1974; Alonso, 1985, para citar apenas alguns).
Já o estudo de Elisa Reis adota uma perspectiva de análise que igualmente utiliza a explicação do compromisso coronelista de Nunes Leal, todavia para afirmar que a burocracia estatal dos programas de governo nas regiões por ela estudadas veio em substituição aos antigos coronéis. Sua hipótese é de que "a burocratização do poder e a extensão dos benefícios sociais ao campo constituem um processo de nation-building, na medida em que fomentam uma nova identidade social em substituição àquela tradicionalmente baseada na lealdade local" (Reis,1988:203-4). Há uma coincidência na explicação de Reis e Bursztyn (1984), quando ambos se referem ao fato de permanecerem os mecanismos de clientelismo e patronagem, mudando, porém, a sua efetivação, pois os políticos locais de hoje são diretamente os representantes do Estado, quando antes havia a intermediação necessária do poder privado dos coronéis.
Técnicos da Emater, líderes sindicais, de associações comunitárias, mais recentemente as Organizações Não Governamentais - todas essas personagens apareceram no meu universo de pesquisa, a diferenciá-la, nesse ponto, das novas lideranças a que se refere Elisa Reis no contexto de sua pesquisa no interior do cerrado de Minas Gerais. Pois no contexto por ela estudado já estava consolidada nesses novos intermediários do poder uma elite local, muito embora usando ainda de velhos mecanismos vinculados ao clientelismo e à patronagem para assegurar sua posição de mando. Diversamente, os intermediários dos programas governamentais voltados para os pobres da região Nordeste, usando ainda dos mesmos e velhos mecanismos clientelistas para conseguir veicular programas à sua clientela, não chegam a constituir uma elite local e sobretudo não articulam essa posição de elite aos mecanismos eleitorais, tal como a situação descrita na pesquisa de Reis. As novas lideranças ainda conservam uma posição tutelada em relação ao antigo poder local, sobretudo quando o processo eleitoral está em jogo. Por isso o reforço à cultura da dádiva talvez seja a marca mais característica desses programas em seu mecanismo de implementação no Nordeste rural.
O que subsiste do sistema coronelista de poder? Subsiste o compromisso entre o poder público, que pode se traduzirem poder centralizado, e o poder local, que persiste à custa de favores na forma de dádivas.
O ponto que considero mais relevante da teoria de Victor Nunes Leal é sua noção de compromisso, que tem fortes implicações para a cidadania concedida. O compromisso implica sobretudo a dádiva do poder. Se antes esse poder estava assentado no domínio territorial, agora esse domínio territorial estava submisso às concessões de favores por parte da recém-instaurada República. A obtenção dos favores, por sua vez, reforçava os mecanismos da cidadania concedida, na medida em que era a subjugação de amplos contingentes de população e voto o que assegurava aos coronéis aqueles favores. A subjugação que estava na base dessa cidadania concedida, por sua vez, era herança de uma cultura política que vinha do tempo de seu monopólio do mando.
Esse mecanismo é de tal forma marcante na sociedade rural que emerge daescravidão, que a qualquer pesquisador social da atualidade chama a atenção a forma como o homem pobre do campo ainda hoje se refere ao interesse dos poderosos em que eles continuem pobres como sempre foram. A esses poderosos eles se referem, não por acaso, indistintamente, como o grande proprietário ou o político local. Nesse sentido, a pobreza do brasileiro não é um estado que tem a ver apenas com suas condições econômicas. Ela tem a ver igualmente com sua condição de submissão política e social. E o compromisso coronelista é que está por trás desse tipo de autojustificação da pobreza como sendo do interesse dos "grandes" do local, como o meio mais importante de eles obterem os favores necessários ao moto-contínuo de seu mando e de sua riqueza. A vinculação pobreza-submissão, mais que uma marca da cultura política herdada do monopólio do mando pelo domínio territorial, é uma marca desse estado de compromisso herdado da nossa República Velha.
Fetiche da igualdade social
A cultura política com a qual me ocupo no contexto deste artigo é uma espécie de cimento das relações de mando e subserviência, que em última análise se relaciona às próprias raízes da desigualdade social brasileira. Seria a continuidade de padrões de mando e subserviência associados à cultura política da dádiva, mesmo quando as bases materiais para sua existência se redefiniram no espaço social.
O sentido dessa continuidade tem a inspiração tocquevilliana de 0 antigo regime e a revolução em dois aspectos: o sentido mais fundamental de observar os elementos presentes na nossa cultura política que representam continuidade em relação aos padrões de mando e subserviência presentes em momentos pretéritos de nossa constituição social, quando o grande domínio territorial tinha enorme centralidade na determinação daqueles padrões; e também o sentido de, ao me debruçar sobre um espaço da sociedade brasileira que espelha com mais vigor traços culturais de nosso passado, poder melhor ver as nossas próprias e específicas mazelas (para além daquelas que a geração de sociólogos da qual faço parte costumava atribuir tão-somente ao capitalismo), sem perder de vista a nova sociedade.
Quero concluir esta última parte do artigo com uma reflexão que remete a dois autores, dos mais importantes para o pensamento brasileiro sobre a identidade nacional, que poderia também ser traduzida como cultura política nacional, naquele sentido acima referido, de continuidade dos padrões de mando e subserviência. Esses dois autores são Gilberto Freyre, de Casa-grande & senzala, e Sergio Buarque de Holanda, de Raízes do Brasil. Ressalvo desde logo que não serão aqui discutidas as obras desses autores, mesmo em se tratando apenas dos livros mencionados: elas serão utilizadas como referencial para pensar a questão que nomeia esta parte do capítulo, sobre o fetiche da igualdade social.
O aspecto do qual me aproprio de Casagrande & senzala, que permeia a reflexão de Gilberto Freyre em todo o livro, diz respeito à miscigenação.
O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre ensanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação. [Freyre, 1973:LX]
Miscigenação do português com a índia, do português com a negra, resgatadas pelo autor no que significaram enquanto necessidade daqueles primeiros colonizadores de aqui constituírem família. Foi, portanto, no interior da casa-grande que essas relações, as mesmas que naturalmente carregavam aquela marca sadomasoquista que já mencionei em passagem anterior deste artigo, essas relações, dizia, foram como que "adoçadas" pelo entorno canavieiro. Era essa a base social de nossa democracia: a democracia racial. Por um lado essa provocação foi forte a ponto de instigar a realização de alguns dos melhores estudos da chamada Escola Uspiana (refiro-me aqui a Fernandes, 1978; Ianni, 1972, e Cardoso, 1977), onde se destaca uma ótica radicalmente oposta na consideração da questão negra, com a tese da escravidão como uma instituição total.(2) Por outro lado, porém, foi uma obra que em muito ultrapassou a simples análise acadêmica, tornando o livro um encontro quase irresistível do brasileiro leitor com sua mais íntima brasilidade. "É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos" (Freyre, 1973:LXXV). Em que o negro aparece
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o botão dê comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo. [Freyre, 1973:283]
Democracia racial não a temos, como de resto também não podemos dizer que temos a social, pelo menos de forma consolidada, conforme aponta Weffort (1992) referindo-se à democracia sem qualificativos. A desigualdade na distribuição de renda é a marca social brasileira com a qual temos nos apresentado ao mundo, depois que o brilho efêmero dos milagres se arrefeceu com a década perdida.
Mas é isso que Gilberto Freyre chama de democracia racial, conseqüência de nossa especificidade de ser um povo originário da miscigenação de raças, é precisamente isso um dos fatores que torna tão nebulosas as nossas diferenças sociais. A democracia racial, enquanto essa gostosa mistura que passa pelos sentidos, é um importante fator mediador das nossas relações de classe.
Sergio Buarque de Holanda apresenta a mediação de classes sob uma outra óptica, embora as raízes de ambos, Sergio e Gilberto, estejam apontando para elementos que encobrem as desigualdades sociais por uma espécie de fetiche. A óptica do autor de Raízes do Brasil é á do "homem cordial", aquele cuja característica é o horror às distâncias, que tem suas raízes na esfera do íntimo, do familiar e do privado, cujas origens, por sua vez, estão relacionadas antes com a especificidade de nossa casa-grande que com traços patrimoniais herdados da cultura portuguesa. Esse homem cordial se expressa na nossa religiosidade caseira, da intimidade com os santos a que igualmente Gilberto Freyre aludira no seu ensaio aqui considerado, assim como em aspectos de nossa linguagem, como o diminutivo acrescentado aos nomes ou o uso do primeiro nome em lugar da polidez e da distância do sobrenome. Gilberto Freyre aludiria à influência negra para a constituição desse homem cordial de Sergio Buarque de Holanda, pois não foi o negro (ou a negra, melhor dizendo) quem adoçou nosso vocabulário, quem amolengou nossas relações tirando-lhes a formalidade?
Esse homem cordial aponta para um sério dilema brasileiro. Por um lado,
a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o "homem cordial". A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. [Holanda, 1984:106-7]
Por outro lado, esse mesmo homem cordial representa a nossa impossibilidade de atingir uma ordenação impessoal que permita a ruptura com os padrões privatistas e particularistas dominantes no sistema e na família patriarcal. Esse dilema não foi, a meu juízo, resolvido teoricamente pelo próprio autor do ensaio, que de certo modo se propunha fazê-lo nos dois capítulos seguintes.
A aparência do encurtamento das distâncias sociais por meio de nossa informalidade no convívio tem um fundo emotivo que permeia mesmo aquelas relações que seriam mais caracteristicamente impessoais. O autor exemplifica esse "desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo" (Holanda, 1984:109) com o depoimento de um negociante da Filadélfia que estranhou o fato de necessitar fazer amizade para poder conquistar fregueses para seu negócio. Mas qualquer um de nós é capaz de arrolar várias situações de nosso cotidiano em que esse traço de informalidade no convívio em contextos caracteristicamente impessoais pode ser observada. Assim,
a amizade, desde que abandona o âmbito circunscrito pelos sentimentos privados ou íntimos, passa a ser, quando muito, benevolência, posto que a imprecisão vocabular admita maior extensão do conceito. Assim como a inimizade, sendo pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade. [Holanda, 1984:107,- nota 157]
Esse encurtamento das distâncias sociais, expressa-o bem o tipo de consideração encontrado comumente nas falas de pessoas pobres da região Nordeste quando afirmam: "Tal pessoa não tem bondade". O "não ter bondade" dessa expressão não tem conteúdo valorativo negativo, como poderia parecer à primeira vista ao interlocutor desavisado. Não ter bondade nesse caso refere-se à ausência de formalismo e convencionalismo sociais, que são elementos definidores da cordialidade. Nesse sentido, a pessoa que não tem bondade é aquela que não se considera melhor ou "mais boa" que as outras e, portanto, não cria obstáculos à proximidade por meio de formalismos e etiquetas. A pessoa que não tem bondade é a pessoa próxima, que foi capaz de encurtar as distâncias sociais, de fato existentes, pelo seu atributo de "não ter bondade". O fetiche da igualdade é um mediador nas relações de classe que em muito contribui para que situações conflitivas freqüentemente não resultem em conflitos de fato; mas em conciliação. E onde as distâncias sociais são mais pronunciadas, quase gritantes às vezes, é onde vamos encontrar mais presente esse fetiche da igualdade, com as exceções necessárias para confirmar a regra. Tome-se, por exemplo, um meio de transporte terrestre e faça-se a aventura de viajar do Sul do país em direção ao Norte, e possivelmente vai se observar que o sentido da cordialidade vai se aprofundando à medida que a viagem progride.
NOTAS
*. Este artigo é parte do primeiro capitulo da tese de livre-docência defendida na Unicamp em maio de 1993, "Trama das desigualdades, drama da pobreza no Brasil".
1. Nenhuma descrição poderá dar uma imagem tão aproximada da forçado mando decorrente do domínio territorial quanto a figura do senhor de engenho do alto de seu alpendre ou de sua montaria quando dirigindo a palavra aos outros. Na minha primeira pesquisa de campo, a que originou a dissertação de mestrado (Suarez, 1977), fiz uma pesquisa amostrai e, para meu infortúnio, caiu na amostra estratificada da área rural uma usina de açúcar das mais antigas na localidade, a Usina Estreliana. Contava-se de seu proprietário que havia atirado à queima roupa em seis camponeses antes mesmo de ouvir qual a reivindicação que os trazia à sua presença, quando aqueles camponeses a ele se haviam dirigido no imediato pré-64, "época dos direitos" que vigorava a partir do Acordo do Campo assinado pelo governador Miguel Arraes. Já estávamos em 1973, mas o temor que esse Homem ainda inspirava ultrapassava as fronteiras de seus domínios. Ao ponto que só algum tempo depois percebi que era esse o motivo pelo qual até o motorista da Universidade Federal de Pernambuco que nos acompanhou naquela fase da pesquisa, o qual morava portanto em Recife e ia a Ribeirão (era esse o município) apenas a trabalho, postergou o quanto pôde a ida a Estreliana, inclusive tentando arranjar um bom motivo para que não fôssemos até lá entrevistar o Homem. O usineiro nos recebeu do alto do seu alpendre, duas pesquisadoras desamparadas ao pé da escadaria da casa-grande. O motorista, esse do carro não saiu. E se avultou ali na nossa presença aquela imagem do mando absoluto.
2. Em uma de minhas pesquisas de campo ocorreu-me um diálogo que nunca foi apropriado em escritos anteriores, pelo simples fato de nada ter a ver com os assuntos que eu pesquisava à época. Entrevistava uma mulher sertaneja, daquelas cujo passado não conheceu a escravidão como forma de trabalho ou como mistura étnica. Era uma mulher branca de olhos azuis, que tinha então a minha idade, 33 anos, mas que aparentava dez anos a mais pelos estragos que o intenso trabalho debaixo do tórrido sol nordestino causara a sua pele. Sua vivacidade ficava por conta daqueles bonitos olhos aos quais não passava despercebido o mundo em volta e o mundo de fora trazido pelos seus familiares que retornavam de São Paulo. Por mais de uma vez ela se referiu a "nós, negros", ao que eu quis saber por que, se ela era branca. "Brancos são vocês, os ricos", respondeu-me. "Nós aqui somos todos negros."
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