Idéias e intelectuais: modos de usar
Gildo Marçal Brandão - 2001
Relutei quando Amélia Cohn me convidou para tomar parte nesse evento em torno do aniversário do Cedec. Pois não se trata de um aniversariante qualquer. Com efeito, em um país onde as instituições costumam durar o tempo de interesse de seus fundadores, quantas podem comemorar 25 anos? Em um país que tem sido submetido a mudanças aceleradas em concentrado período de tempo, quantas instituições universitárias deixaram marca no debate público? Em um país no qual a vida acadêmica tem se confrontado com tanta burocracia e risco de taylorização, quantas instituições de pesquisa conseguiram renovar o seu projeto? Em um país em que as transformações ideológicas e as trocas de campo político foram tão generalizadas e intensas, quantas instituições intelectuais foram capazes de reafirmar seu compromisso de nascença com a esquerda, e de rejuvenescê-lo?
Não é preciso concordar com a problemática, tônica e evolução políticas do Cedec para constatar o quanto ele se tornou parte integrante da história intelectual de uma geração. Não é esse, é claro, o momento de escrevê-la. Basta lembrar que é possível reconhecer, em uma série de temas, problemas, formas de abordagem e argumentos que se disseminaram nas ciências sociais brasileira e latino-americana desses anos, a marca intelectual e política de quem as patrocinou. Assim, esse centro de estudos e debates sobre a cultura contemporânea nasceu trazendo à tona a crítica ao sindicalismo e à esquerda então existente, identificando a contradição básica do experimento do pós-guerra no amálgama entre uma estrutura sindical estatalizada e corporativa com uma democracia representativa de participação ampliada, reivindicando a autonomia do Estado vis-à-vis as classes sociais, alçando o conceito de populismo à condição de matriz explicativa da conturbada política latino-americana, recusando um modo de fazer política estruturado em torno de grandes alianças e repropondo os temas da autonomia do sindicato e da organização da sociedade civil em contraposição aos protagonismos do Estado e mesmo do partido político.
No momento da crise - como se costuma dizer - dos grandes paradigmas, foi pioneiro na revalorização da dimensão simbólica da política, na justificação intelectual dos novos movimentos sociais e na postulação da existência de novos e plurais sujeitos sociais, que responderiam à experiência de fragmentação do mundo e à consciência do esgotamento do “modelo” da classe-sujeito, responsável tanto pela mudança da realidade como pelo seu conhecimento. Também aqui, a questão da autonomia da sociedade civil diante de uma concepção da política centrada no Estado e nas alianças políticas continuava em primeiro plano.
Se minha periodização não é simplificadora, diria que a radicalização da crise na virada dos anos 90 provocou uma reação de autodefesa e distanciamento da práxis anterior, logo traduzida no esforço de incorporação dos problemas e das formas de abordagem da ciência política institucionalizada e na reflexão crítica sobre a situação e as políticas sociais implementadas pela nova democracia. O acento aqui se deslocou da “política instituinte” - um termo originário da filosofia política francesa e que denotava o horror à positividade - para os processos de construção institucional em que o país e a América Latina mergulhavam. Mas, mesmo nessa fase, permaneceu a ponta de desconfiança tanto diante do Estado como em relação a uma perspectiva estritamente maquiaveliana da política, como se o Cedec, reconhecendo malgré tout a centralidade da ética da responsabilidade, insistisse sempre no elemento de convicção, com receio de que o cálculo racional das conseqüências da ação derivasse em mero instrumentalismo e que o compromisso do ator com o caminho escolhido se reduzisse à mera accountability. O melhor produto dessa delicada redefinição tem sido, a meu juízo, a revista Lua Nova, que, a partir do número 15, de outubro de 1988, não só acompanhou analiticamente a transição à democracia, como se tornou o principal pólo da nacionalização do debate norte-americano e europeu em torno da teoria política democrática, especialmente aquela normativa, ao tempo em que se abria à revitalização das pesquisas sobre o pensamento político brasileiro, complementaridade que garantiu à publicação notável individualidade no mundo cultural.
Ninguém terá dificuldade em situar essas mudanças intelectuais em seus contextos sócio-políticos nacional e mundial. Agora, pela palavra da Amélia, o Cedec faz uma reafirmação de sua identidade de esquerda. E o faz conectando-a diretamente à questão de “por quê” e “como” pensar o Brasil - como se uma não fosse sem a outra. Eis o segundo motivo de meu temor. Porque a pauta não é exclusiva da instituição nem é reproposta em um momento qualquer. A mera necessidade de pôr a pergunta revela o quanto ela obriga a tomar distância do bravo novo mundo que a história nos legou, o quanto a nossa é uma consciência infeliz. Sequer temos certeza clara e distinta da relevância de nossa experiência e é impossível fechar os olhos à heteronomia de nossa condição social e espiritual; freqüentemente deploramos a insuficiência das matrizes e categorias intelectuais com que as abordamos. Por outro lado, sabemos que, numa conjunção crítica como essa, o país que devemos construir nem sempre é o que pode ser construído e, de qualquer maneira, tal construção depende estreitamente de como interpretamos sua trajetória histórica e suas possibilidades objetivas. A própria conexão reivindicada indica que a identidade retomada não pode ser fundamentalista, seja porque o caráter ideológico aparentemente adverso da era atual tem pelo menos a vantagem de nos constranger à ousadia intelectual, seja porque a sua consistência está hipotecada à qualidade e à amplitude das respostas que formos capazes de dar ao mundo fora de nós.
Entro no meu tema, portanto, reconhecendo a complexidade da questão e acossado pelo desafio que ela representa. De fato, quando imaginava qual poderia ser um comentário consistente à questão “por que pensar o Brasil?”, o primeiro argumento que me veio à mente foi: porque se não o fizermos ninguém o fará. Cada um de vocês reconhecerá aqui, transposto para o pensamento social e político brasileiro, a observação de Antônio Cândido no prefácio à 1a. edição de Formação da Literatura Brasileira, quando tentava justificar a (e se justificar pela) ocupação com esse gênero considerado menor:
Há literaturas de que um homem não precisa sair para receber cultura e enriquecer a sensibilidade; outras, que só podem ocupar uma parte de sua vida de leitor, sob pena de lhe restringirem irremediavelmente o horizonte. Assim, podemos imaginar um francês, um italiano, um inglês, um alemão, mesmo um russo e um espanhol, que só conheçam os autores de sua terra e, não obstante, encontrem neles o suficiente para elaborar a visão das coisas, experimentando as mais altas emoções literárias.
[...] A nossa literatura é galho secundária da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no Jardim das Musas. [...] Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimação penosa da cultura européia, procuravam estilizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam - das quais se formaram os nossos [1].
O que vale para a literatura vale, a fortiori, para o pensamento político, gêneros intelectuais que, salvo engano, têm sido as formas privilegiadas de se haver com a intratabilidade de nossa experiência. Ainda que a grande literatura haja lidado com esta de maneira mais ampla, aquele também produziu os seus Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Quer isto dizer que, se o lugar de onde se fala não é neutro, não há entretanto por que alimentar qualquer sentimento de inferioridade ou exibir traço de mentalidade colonizada - também no caso do pensamento político, abre-se a possibilidade de que a fraqueza se converta em força, o atraso
Ninguém, entretanto, o fará por nós e, por isso mesmo - este é o meu segundo argumento -, estamos condenados a fazê-lo. De fato, se o papel das idéias políticas não é demiúrgico, mas também não é ou deixou de ser ornamental, é porque o próprio processo só se constitui como tal quando um pensamento sobre ele se articula, em disputa de morte contra formulações alternativas, para ser reconhecido como a sua expressão. Para o bem e para o mal, a relação entre processo e projetos não é apenas histórica, mas estrutural: boa parte do conflito político em países de capitalismo retardatário, democracia frágil e globalização subalterna, como o nosso, continua a girar em torno de interpretações, do modo como os sujeitos que contam, especialmente em conjunções críticas, pensam o país e, em função disso e dos interesses que abraçam, lutam para lhe imprimir direção. Para usar uma linguagem em desuso, a experiência social é de tal ordem que constelações como essas são parte não desprezível do universo pelo qual os homens tomam consciência dos seus conflitos e os conduzem até o fim. Desse ponto de vista, nenhuma singularidade nos diferencia, sequer o sentimento de desterro em nossa própria terra, que afinal de contas deve ser comum a boa parte das sociedades-fragmento, que são produto da aventura européia no trópico [2].
Longe de mim, no entanto, negar que o caráter a um tempo exacerbado e rarefeito com que costumamos lidar com as relações entre as idéias e o mundo real, entre ser e dever-ser, marcou profundamente nossa vida intelectual. Ao contrário, reconheço que aqui reside um de seus veios mais instigantes. Extremada a diferença, topamos com a volubilidade do intelectual ou com a bizarria dos engajados, dos quais Brás Cubas e Policarpo Quaresma foram as mais completas expressões literárias [3]; estilizada a relação, ela pode dar, e deu, na dicotomia entre país real e país legal, que percorre como um fio vermelho a reflexão brasileira, do Visconde de Uruguai a Cruz Costa, de Tavares Bastos a Bolívar Lamounier, de Guerreiro Ramos a Wanderley Guilherme dos Santos, de Hélio Jaguaribe a Fernando Henrique Cardoso; radicalizado o descompasso, tudo se passa como se o Brasil fosse, para o bem e para o mal, o “produto de uma teoria”, como na esdrúxula observação de Euclides da Cunha [4]; tudo isso, percepções e modos de ver que acentuam o suposto “excepcionalismo” do país e servem de base tanto à apologia conservadora quanto ao desencanto, liberal ou esquerdista, com o que seria o artificialismo congênito das instituições.
A expressão mais nítida desse divórcio entre ser e dever-ser, e conseqüente sentimento liberal, talvez seja a formulada por Raymundo Faoro, no final da primeira edição de Os Donos do Poder:
Parece impossível, como ensinou Jesus, deitar vinho novo em odres velhos, porque, em fermentando o vinho, aqueles se rompem e este se entorna. É necessário que o vinho novo seja conservado em odres novos, para que ambos se conservem.
As velhas caldeiras, a fim de que se expanda a pressão, hão de romper-se e fragmentar-se em mil peças disformes. A explosão há de ser total e profunda e velhos odres devem ser abandonados. Somente assim a criança tolhida e enferma terá ensejo de crescer e tornar-se adulta. Essas são as expectativas cegas da fé, que a razão e a análise histórica repelem [5].
Não há dúvida de que, variada a ênfase, estratégias analíticas e opções ideológicas, é a mesma cesura entre o normativo e o empírico que torna plausível o modo como Oliveira Vianna organiza a sua narrativa, vendo o nosso desacerto como resultado da ação levada a cabo pelas idéias, ou seja, “pela idéia liberal, pela idéia abolicionista, pela idéia federativa, pela idéia republicana e pelas fermentações morais que determinaram as chamadas ‘questões militares’”, todas elas alérgicas ao “sentimento de nossas realidades” e vazias do “poder transfigurador da vontade” dos “reacionários audazes”, que souberam entender o país e mantê-lo sob rédea curta [6]. Faz sentido, mas é falso. Do mesmo modo, ela explica a frustração e o desespero dos engenheiros institucionais auto-investidos da missão de domar nossa selvagem democracia, pois a política brasileira realmente existente continua rebelde às tentativas de reduzi-la ao jogo schumpeteriano das instituições, ainda não é e dificilmente será mera “operação política”, apática às disputas para fazer vencer visões de mundo.
Seja como for, parece claro que aquela constelação histórica e essa polarização ideológica entre idealismos orgânicos e constitucionais produzem e reproduzem o peculiar protagonismo dos intelectuais brasileiros. De fato, pensar o Brasil tem sido, desde o Império, uma missão ou um privilégio dos intelectuais. Haverá sempre alguém para dizer que essa é precisamente a marca da infelicidade do país e da soberba dos intelectuais - e terá razão. Não temos uma história feliz, e os países que não as têm costumam delegar muito aos seus intelectuais. Ao contrário de nações, como os Estados Unidos e a Inglaterra, onde a hegemonia sempre nasceu da fábrica e intelectualidade, política profissional e negócios parecem andar juntas, a nossa é uma dessas cuja inteligência sempre sofreu a tentação de se converter numa intelligentsia. Ora, desde a crítica conservadora à Revolução Francesa, sabemos que a formação de grupo social desse tipo pressupõe talento sem propriedade, a existência de um conjunto de intelectuais marginalizados do mundo da produção e das instituições políticas costumeiras, situação só possível em grande escala em países cujas classes dominantes não conseguiram ou se recusaram a incorporar os seus subalternos aos mercados. Solta no ar, a intelectualidade sucumbe periodicamente ao fascínio de “ir ao povo” ou sente-se compelida a “dar voz aos que não têm voz”. Ou, ao contrário e mais sistematicamente, considera-se investida de um mandato, cuja formulação exemplar devemos a Joaquim Nabuco: trata-se de uma “dupla delegação, inconsciente da parte dos que a fazem, mas, em ambos os casos, interpretada pelos que a aceitam como um mandato que se não pode renunciar”. Ora, essa “advocacia gratuita” das classes sociais, que têm dificuldade em defender seus direitos e tomar consciência deles, é que alimenta ou exprime a peculiar tradição de rebeldia do intelectual brasileiro, que vim tematizando até aqui [7].
Sei bem que tudo isso vem sendo transformado nos últimos tempos, quando pela primeira vez nosso tipo de capitalismo se tem demonstrado capaz de cooptar os mais capazes, fazer de todo economista um banqueiro em potencial, condenar os cientistas sociais ao papel de consultores do Estado e do mercado, induzir os pesquisadores à reprodução da “agenda americana de pesquisa” [8], reduzir a política à administração das necessidades de grupos sociais segmentados e vender a idéia de que ação coletiva boa é apenas aquela via instituições e corporações acadêmicas e profissionais. Também aqui, foram os artistas que se anteciparam na percepção desse fenômeno de longa duração:
Hoje é possível perceber que essa rebeldia era fruto da incapacidade que os diversos projetos colonizadores sempre tiveram em assimilar amplos setores das camadas médias e dar-lhes uma função dinâmica no processo social. O que estava reservado ao intelectual pequeno burguês antes do período a que estamos nos referindo? O jornalismo mal pago, o funcionalismo público, uma cadeira de professor de liceu, o botequim, a utopia, a rebeldia. Por falta de função ele era posto à margem. Até muito pouco tempo eram muito poucas as opções do estudante universitário - tudo era criado fora, o carro, a geladeira e a ideologia. Assim, o sistema econômico não tinha como assimilar a capacidade criadora dos melhores quadros da pequena burguesia que ficavam colocados, perigosamente, no limite da rebeldia. O que acontece agora, inversamente, é que a radical experiência capitalista que se faz aqui começa a dar sentido produtivo à atividade dos setores intelectualizados da pequena burguesia: na tecnocracia, no planejamento, nos meios de comunicação, na propaganda, nas carreiras técnicas qualificadas, na vida acadêmica orientada num sentido cada vez mais pragmático, etc. O disco, o livro, o filme, a dramaturgia, começam a ser produtos industriais. O sistema não coopta todos porque o capitalismo é, por natureza, seletivo. Mas atrai os mais capazes [9].
Ora, é nesse novo contexto - esse é o meu terceiro ponto - que estamos sendo instigados a repensar o Brasil ou ser devorados. De fato, ainda não ousamos chamar o que está ocorrendo no país pelo seu nome - uma revolução capitalista; mas é disso que se trata e é essa a determinação mais global com que temos de lidar para pensá-lo. Devemos entender por ela não apenas as reformas institucionais que a aliança governamental atual tem implementado, mas a magnitude das mudanças que vêm acontecendo na forma do Estado, em suas relações com as classes sociais, na estrutura patrimonial e no modo de operação dos grupos dominantes, no estilo das políticas públicas, na diluição da capacidade de intervenção organizada dos grupos subalternos, nas formas de consciência social, etc. Devemos entender, sobretudo, a naturalização do individualismo possessivo, que pela primeira vez em nossa história enraizou-se de alto a baixo e, em que pese o sentimento anticapitalista notavelmente resistente em muitas camadas populares, tornou-se capaz de inspirar a conduta e dirigir a vida cotidiana de grandes grupos sociais; bem como a criação das bases materiais e políticas que separaram a intelectualidade de classe média das classes subalternas tradicionalmente aliadas e permitiram essa fusão entre o mundo industrial e financeiro e a grande intelectualidade.
Para não ser mal-entendido, vale abrir um parêntese e ressaltar o caráter ambivalente, de fato contraditório, desse processo, que, ao reorganizar as bases do capitalismo brasileiro, está varrendo de cena comportamentos e valores tradicionais, convive, dentro de certos limites, com os mais variados arranjos governamentais e ganhou velocidade e corpo apenas em democracia, aliás, a mais ampla que o país conheceu.
Na impossibilidade de aprofundar aqui esses argumentos, limito-me a assinalar sumariamente alguns de seus efeitos no modo pelo qual se vem analisando o Brasil. O primeiro é uma das conseqüências mais complicadas da transformação do intelectual em especialista, das ciências sociais em técnicas de racionalização das demandas sociais, do trabalho acadêmico em reprodução dos interesses e programas das agências estatais e financeiras. É que, por maior que seja sua dimensão democratizante comparada com o antigo mandarinato, a tecnificação da atividade intelectual e a fragmentação da pesquisa científica numa miríade de disciplinas e subdisciplinas fechadas e especializadas no exame de limitados objetos, acabam por bloquear a possibilidade de pensar o conjunto, reduzem a reflexão à expressão reificada do próprio processo social [10].
Nessa circunstância, a generalização de um certo tipo de institucionalismo não é somente uma escolha racional mas uma inevitabilidade histórica. Não tenho nenhuma dúvida quanto à relevância do estudo das instituições, sobretudo em democracia, e à necessidade de responder ao desafio institucionalista. Mas talvez valha a pena chamar a atenção para o fato de como o horizontalismo de suas análises prolonga e renova um estilo de pensamento arraigado na vida política brasileira desde o Império, para o qual basta o bom funcionamento das instituições para termos democracia, basta a boa lei para produzir a boa sociedade. E, se sua legitimidade deriva da própria experiência democrática em curso, freqüentemente é difícil perceber onde termina o seu realismo e começa a aceitação resignada (e a apologia indireta) do existente, como a ênfase no avanço possível serve de freio ao necessário, quando o reconhecimento do gradualismo do processo se transforma em capitulação diante do dado - que é, me parece, ao que leva a aceitação do transformismo não (exclusivamente) como critério de interpretação, mas como norma reguladora da ação.
Ora, quebrado o fetiche desses “idealismos” opostos e complementares, e dissolvendo-se, como vem acontecendo, a ilusão de que a época seria a da realização do “fim da história”, a ilusão de que, independentemente de suas instituições e trajetória, cada país estaria condenado a se dissolver no Mesmo, não exigiria a experiência brasileira outro tipo de abordagem? Em um mundo em que os conflitos radicais não foram eliminados e o fenômeno ideológico teima em não morrer, deve uma situação, na qual as grandes interpretações do país continuam a ser chave na formação da vontade e na direção política dos grandes grupos sociais, ser descrita como atraso, resíduo, ou como antecipação em relação à evolução mundial? Terá nossa situação mudado tão radicalmente a ponto de revogar a necessidade do mandato ou estamos adentrando um outro novo mundo em que ele precisará ser renovado?
Não pretendo terminar com nenhuma nota utópica. Sei bem que uma concepção unitária e realista do mundo - que está subjacente, afinal, ao modo de pensar o Brasil aqui sugerido - já não conta sequer com aquela garantia metodológica que um dia se considerou própria da dialética, como método de análise enfim adequado às estruturas do capitalismo; como pensamento que, fora de moda nas ciências naturais, encontrava nas ciências humanas o seu ambiente natural; como teoria cujos conceitos e estrutura categorial reproduziriam flexivelmente o andamento da própria existência. Dilapidada a sobrevida que havia adquirido, uma vez passado o momento de sua realização, perdida a carga de universalidade que um dia ambicionou, ela parece reduzida a mero ponto de vista, pesado e anacrônico, tanto mais que a própria evolução do capitalismo e o irremediável esgotamento do que se pretendia transformação do mundo parecem tornar obsoletas a constelação histórica e a ambição teórica que lhe permitiram nascer.
Mas a exigência a que satisfazia não continua, apesar de tudo, de pé? Em que lugar encontrar-se-ia outra orientação com coragem de pensar arrebatadoramente, inclusive contra si própria, em meio ao “esterco das contradições”? Em seus melhores dias, essa perspectiva constituía, como já se disse, “um precioso recurso contra a redução positivista do fato humano à coisa ou ao comportamento fragmentado” [11]. Por mais fora de moda que esteja, ela conserva sobre a ciência (política, social) convencional a vantagem, filha do ceticismo, de jamais esquecer que o que os atores dizem não corresponde simplesmente ao que fazem, que as escolhas dos agentes não resumem o sentido global do processo e, sobretudo, que tudo que existe merece perecer. Tudo isso condicionado pela distinta maneira de abordar o dado. Como disse certeiramente o último Goldmann:
O grande valor da dialética é precisamente o de não julgar moralmente e não dizer apenas: queremos a democracia, é necessário introduzi-la; queremos a revolução, é necessário fazê-la - mas perguntar-se quais as forças reais de transformação, qual a maneira de achar na realidade, no objeto, na sociedade, o sujeito da transformação, para tentar falar na sua perspectiva e assegurar, sabendo perfeitamente quais são os riscos do malogro, o caminho para... [12]
Salvo engano, é dessa maneira que carece pensar o Brasil e é esta identidade de esquerda que merece ser reafirmada.
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Gildo Marçal Brandão é professor do Departamento de Ciência Política e coordenador científico do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Democratização e Desenvolvimento, da Universidade de São Paulo.
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Notas
[1] Em Formação da Literatura Brasileira (Momentos decisivos) . Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1997, v. I, 8ª ed., p. 9 e 10.
[2] Fragment cultures é um conceito usado por Louis Hartz para dar conta do processo pelo qual os países do Novo Mundo constroem suas próprias culturas a partir dos fragmentos da cultura européia dos quais se apropriam. É da mesma família das “idéias fora do lugar”, metáfora cunhada por Roberto Schwarz para explorar processos e resultados da imigração das idéias no trópico. De Hartz, ver The Founding of New Societies - Studies in the History of United States, Latin America, South Africa, Canada, and Australia. San Diego: A Harvest/HBJ Book, 1964; e The Liberal Tradition in America. San Diego: A Harvest/HBJ Book, 1991, 2ª ed.
[3] Cf. os estudos de Roberto Schwarz, Um Mestre na Periferia do Capitalismo - Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990; e Carlos Nelson Coutinho, “O significado de Lima Barreto em nossa literatura”. In: Cultura e Sociedade no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000, 2ª ed.
[4] Em À Margem da História. Rio de Janeiro: Lello, 1965, 2ª ed.
[5]
[6] A realização mais acabada desse modelo parece ser O Ocaso do Império. São Paulo: Melhoramentos, 1925, de cujo prefácio, p. 7, tirei a primeira formulação. As expressões seguintes são de Populações Meridionais do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952, v. I, 5ª ed., p. 19, 20 e 430, respectivamente.
[7] Cf. Joaquim Nabuco. O Abolicionismo. Petrópolis: Ed. Vozes, 1988, 5ª ed., p. 35.
[8] A expressão é de Luiz Werneck Vianna, em “A institucionalização das ciências sociais e a reforma social: do pensamento social à agenda americana de pesquisa”. In: A Revolução Passiva - Iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Revan/Iuperj, 1997.
[9] Paulo Pontes e Chico Buarque de Holanda. Gota D’ Água. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1975, “Apresentação”, p. xiv. Sublinhado pelos autores.
[10] Cf. Alain Caillé. A Demissão dos Intelectuais - A crise das ciências sociais e o esquecimento do factor político. Lisboa: Instituto Piaget, trad. Armando Pereira da Silva, 1993. Talvez devesse acrescentar que bloqueia ou dificulta a leitura a partir dos “de baixo”, pois “em cima” se totaliza sem parar.
[11] José Arthur Giannotti. Origens da Dialética do Trabalho. São Paulo: Difel, 1966, Prefácio, p. 7.
[12] A Criação Cultural na Sociedade Moderna. São Paulo: Difel, trad. Rolando Roque da Silva, 1972, p. 117.
Fonte: Lua Nova. São Paulo, n. 54, 2001.
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