sábado, 21 de março de 2009

Luiz Werneck Vianna - O pensar e o agir. Lua Nova

O PENSAR E O AGIR

LUIZ JORGE WERNECK VIANNA

36 LUA NOVA Nº 54 — 2001

Agradeço o convite e desejo uma longa vida ao CEDEC!

Desconfio que tenha sido, se não membro fundador, um de seus primeiros colaboradores – deve haver algum papel em que isso esteja registrado. Mas, existindo ou não a prova do que alego, o que importa é saudar o que se comemora hoje. O tema é Pensar o Brasil, e diante dele me sinto em situação semelhante a do meu tempo de colégio primário, quando as professoras nos exibiam gravuras – em geral, cenas bucólicas da vida rural –, exigindo de nós uma composição. Diante da gravura, estávamos obrigados a ter idéias e criar uma fabulação, tal como me sinto agora, e lembro que naqueles momentos sempre procurava me apressar para ganhar rápido o direito ao recreio e à merenda, exatamente como farei nesse instante, inclusive porque hoje é dia de festa, que, aliás, já nos espera ali fora.

Pensar o Brasil é muito complicado. Somos o quê? Somos o filho do latifúndio com a escravidão, do jacaré com a cobra d’água, um resultado dessa construção. Ainda provocando: somos o príncipe encantado nascido desse cruzamento bizarro, que, tudo pesado, deu certo. Afinal, estamos aqui, cuidando de pensar o Brasil, enquanto ele está se fazendo lá fora, não é verdade?

E sempre tivemos a consciência de que esse país tinha uma vocação expansiva, não necessariamente reconhecida no plano dos que o pensam, porque o Brasil pensa com os pés, como nos grandes movimentos migratórios que vararam e ainda varam esse continente, esse contingente imenso de 170 milhões de brasileiros que criou uma realidade fantástica, um país que é uma novidade e uma singularidade!

Adoto, nessa hora em que tantos da intelligentsia negam a vitalidade da experiência civilizatória brasileira, o tom provocativo da linguagem de ecos messiânicos, e me ponho em linha de continuidade com a tradição que vem de Gilberto Freyre a Darcy Ribeiro, que jamais perdeu de vista o que havia em nós de Rússia e de América -– Gilberto, como se sabe, em Casa Grande e Senzala chegou a nos designar como a Rússia americana. Não somos, é claro, filhos do pensamento, como tantos dizem da Alemanha de inícios do século XVIII, e não se pode entender o Brasil sem a dimensão do agir, embora de um agir muito fragmentado, difuso e disperso, como o que se faz presente nas narrativas da conquista do Oeste, de Sérgio Buarque de Holanda.

Também “andando”, freqüentemente apenas “andando”, fizemos o Brasil.

O IMPÉRIO E AS ELITES DO PENSAR

Penso que esse tema faz mais sentido hoje do que em qualquer outro momento anterior, e foi sob essa intuição que pretendi armar um caminho de aproximação à questão que nos é proposta pelo CEDEC. Para tanto, voltei a Nabuco, um Nabuco de que sempre me utilizo nesta seguinte passagem de Minha Formação: “Há duas espécies de movimento em política, um de que fazemos parte supondo estar parados, como o movimento da Terra, que não sentimos, outro o movimento que parte de nós mesmos. Na política são poucos os que têm consciência do primeiro, no entanto, esse é talvez o único que não é pura agitação”. Dessa citação extraio o registro clássico entre as elites do pensar em contraposição ao agir, o pensar como uma atividade de eleitos, daqueles que detêm o sentido da civilização e que são capazes de calcular o mundo provisório, o mundo precário, um mundo que não tem sustentação interna, condenado a soçobrar se for entregue a si mesmo.

Que mundo é esse que não tem sustentação? É o da insolidariedade social, o do latifúndio, o da fragmentação, o do clã, o mundo da parentela, em que o plano do interesse não tem como se elevar ao do pensamento.

Sobre isso versam as páginas clássicas de Maria Silvia de Carvalho Franco, referentes à atividade econômica do café e a como, a partir dela, não se chega ao plano abstrato do Estado nem a um projeto comum — não se atinge a região do pensamento. O fazendeiro, é frase dela, foi sobretudo um solitário. O interesse entre nós nasce com essa marca, a marca da solidão, da desintegração, cedendo à força simplificadora do latifúndio. Embora em sua bela análise Maria Sílvia não mobilize Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna, em ambos se reconhece a presença de um certo Nabuco, que não reconhecia no agir uma instância de fundação para o pensamento.

Pensar, portanto, na hora inaugural em que se forma o Estado-nação, é uma atividade que não tem como partir do agir, é uma atividade de eleitos, dos que detêm em si as luzes da razão e o caminho do futuro, daqueles que, tendo o pé no outro lado do Atlântico, têm a premonição de para onde devemos ir, trabalhando “nessas vastas solidões”, procurando evitar esses “pequenos movimentos” que não levam a nada, porque são pura agitação.

Entender “o movimento da Terra”... Qual movimento da Terra? A escravidão é iníqua, mas é necessária; o latifúndio é anacrônico, mas não há estrutura econômica a pôr no seu lugar... Opensar, nesse sentido, deve, inclusive, interditar certas formas do agir, que não terão credenciais para se elevar ao plano

do pensamento, como na ação plebéia dos homens com inscrição intersticial no mundo –– os tropeiros, os vendeiros, os sitiantes, seres que vivem na dimensão da necessidade. Tais agentes podem, talvez, alcançar uma certa mobilidade social, mas, submersos no sistema existente, encontram-se limitados pela rusticidade dos seus interesses, não chegam ao pensamento, não formam identidades. Não representam nem encarnam um padrão civilizatório; expressam uma materialidade sem idealidade, que somente o tempo longo, daquele tipo que não sentimos transcorrer, poderia educar para a vida civil.

Dizia Nabuco que “pertencemos à América pelo sentimento novo, flutuante do nosso espírito, e à Europa por suas camadas estratificadas. O que é leve, o que é ligeiro, o que flutua, é o sentimento novo. O que tem lastro, o que efetivamente tem uma raiz, que deve e pode prosperar, está nas suas camadas estratificadas”.

Estaríamos assim condenados, concluía ele, sob os efeitos dessa tensão, à mais terrível das instabilidades, uma vez que não haveria possibilidade de comunicação entre as elites e a massa do povo, dificultando, ou mesmo obstando, ao menos por ora, a via inglesa da incorporação deste último aos valores das primeiras. Estaríamos, aqui, em um trecho do planeta do qual a humanidade ainda não teria tomado posse, uma espécie de jardim infantil. A vasta solidão do Brasil seria, na verdade, um efeito desse lugar ainda imaturo para as aventuras do espírito. O sedimento flutuante novo estaria presente na paixão mercantil, no homem de negócios, no Brasil que se faz com os pés. E prossegue: “não quero dizer que haja duas humanidades, a alta e a baixa, e que nós sejamos desta última”. Talvez a humanidade, concluía Nabuco, “se renove um dia pelos seus galhos americanos, mas no século em que vivemos, o espírito humano está do outro lado do Atlântico. O Novo Mundo, para tudo que tem imaginação estética ou histórica, é uma verdadeira solidão”.

Esse é o Nabuco ou esse é o Império? O Império pensou assim, assim selou o afastamento entre o plano do pensar e o plano do agir. O pensar não só está separado, mas desajustado, desconfiado da empiria brasileira, especialmente do mundo mercantil. Dir-se-á: você está invocando os vendeiros, os tropeiros” — mas se eu invocar Mauá, Tavares Bastos, Rebouças — e lembro, aqui, do brilhante O Quinto Século, de Maria Alice Rezende de Carvalho —, homens dos grandes interesses americanos modernos, que nasceram e se fortaleceram no Império e que não conseguiram se alçar ao plano da atividade pública, ao plano abstrato do Estado, ao plano do pensamento e de um pensamento organizador? Qual era a condição para que pensamento e ação pudessem convergir?

Oliveira Vianna, em 1918, em Populações Meridionais..., entendeu isso melhor do que ninguém. A possibilidade do pensar e do agir convergirem estava na questão agrária, na possibilidade dos intelectuais do liberalismo democrático e dos matutos do Centro-Sul se encontrarem em torno de uma reforma agrária radical, idéia que lhe parecia extraordinariamente ameaçadora, porque traria consigo a revolução democrática, e com ela uma fragmentação política em escala mais grave que a do período da Regência, importando o abandono e a perda da grande obra do pensamento do Império, que teria sido a de constituir a unidade nacional. Para ele a unidade nacional ou seria fruto do pensar ou não teria como se realizar, resultado que foi do papel criativo de uma paixão, da vocação de uma elite territorialista, ibérica, não tendo como encontrar os seus fundamentos na ação de homens apenas treinados em uma vida mercantil incipiente. A comparação em Oliveira Vianna é recorrente: não nascemos como a federação norte-americana, unificada por baixo, pela integração econômica, que, entre nós, mal estaria no horizonte.

Somos uma federação porque fomos uma unidade construída no plano do pensamento e imposta pela política –– o Brasil seria congenitamente metafísico. Enquanto que a busca da federação, como no Tavares Bastos de A Província, apontaria para o caminho do agir, com todos os riscos da fragmentação admitidos pelo publicista do Império, nós somente somos a unidade porque aqui presidiu o caminho do pensar. São realidades inamovíveis! Não temos como deslocar as marcas do latifúndio que estão na raiz da nossa formação, base da nacionalidade, dizia Oliveira Vianna. Não vamos deslocar as marcas da escravidão que sedimentaram a nossa específica sensibilidade e o mundo dos nossos sentimentos, como interpretaram o Nabuco de Massangana e o Gilberto Freyre de Casa Grande e Senzala. O Brasil não suporta rupturas, sob pena de desintegração, porque a matriz do interesse não lhe concede sustentação.

Caetano Veloso, em “Noites do Norte”, uma belíssima composição, não à toa celebra Nabuco musicando a sua prosa, celebrando a sensibilidade da população submetida à escravidão como uma marca permanente do Brasil.

O pensar e o agir, portanto, nascem entre nós com essa antinomia.

E mais: apostar no agir era, por exemplo, apostar na Regência, cuja inclinação pela livre iniciativa individual e pela descentralização nos teria aproximado da secessão. A cena de fabulação dos estadistas do Império, recriadores em solo americano do territorialismo ibérico, como na bela demonstração de Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício, à base da experiência dos movimentos autonomistas da Regência, era o de que a primazia do agir levaria à balcanização do país. Sem dúvida, para eles, o preço

da unidade era o da restrição à liberdade. Outra marca inamovível – a federação como obra do Centro político.

A MODULAÇÃO REPUBLICANA

A República introduz uma modulação nessa relação entre o pensar e o agir. Em primeiro lugar, porque a República promove o interesse, cuja matriz se encontra em São Paulo –- a República paulista. Está aqui o Renato Lessa com o seu importante A Invenção Republicana, e, para encurtar razões, penso que a República é, tal como a Independência, mais uma revolução encapuzada, como há tempos sustentou Regis Andrade em tese de doutorado, infelizmente ainda inédita. Enfatizar o tema dos “bestializados” no evento da proclamação da República a fim de destacar a recepção passiva da população a ele, se contém, é claro, a sua verdade, pode conduzir ao ocultamento do que o pacto republicano importou em termos de mudanças político-sociais desencadeadas a partir dele. Mudanças que foram sentidas, no seu alcance maior, na passagem dos anos 10 para os anos 20, com as greves de 17, as greves de 18 e 19, sobretudo com a rebelião tenentista de 22, mais tarde radicalizada sob a forma de um movimento permanente com a Coluna Prestes, naquela extraordinária coincidência que levou a que, nesse mesmo ano, fosse formado o Partido Comunista Brasileiro e organizada a Semana de Arte Moderna. Data daí a tentativa de apropriação por parte da matriz do interesse e do agir do que poderia elevá-la ao plano do pensamento. Qual é o movimento que domina a intelligentziada época? A ida ao Brasil! Os sanitaristas, Oswaldo Cruz, os sertanistas, Rondon, os artistas, Mário de Andrade, Villa lobos, a literatura regional, os tenentes... Descortinar o lugar de onde se pudesse extrair uma estética, uma imaginação, um pensamento singular. A

Coluna Prestes vagueia pelo Brasil sem pensamento, como uma mula sem cabeça, passando pelo latifúndio sem ter uma palavra de ordem de revolução agrária –- ver, por exemplo, o excelente relato da Coluna realizado por Anita Leocádia Prestes. Em todos, o que se tem é um sentimento que ainda não consegue se formalizar em idéia, na expectativa de que a exposição à matéria-prima do Brasil em estado bruto produza o Fiat que leve ao conhecimento, ao pensar. Intelligentzia posta em movimento, a mobilidade social que alarga o espaço da razão brasileira, olhando, escrutinando, selecionando temas para a saga a ser ainda construída, como no caso do Mário, de Villa, da Coluna. Ida ao Brasil, ida ao povo –– não se trata mais do agir mercantil, mas de um agir orientado para a reflexão e para a produção de um pensamento.

Essa promissora década é bloqueada, como se sabe, pela Revolução de 30, que dá partida a uma intervenção modernizadora e autoritária sobre a sociedade, com elementos de garantia de direitos, de elevação das camadas populares, muito especialmente dos trabalhadores urbanos, mas que, em contrapartida, lhes suprime a autonomia de suas associações e restringe, em geral, as liberdades civis e públicas de todo o corpo social. Pensar e agir, no contexto da institucionalidade corporativa imposta a partir da década de 30, vai importar uma racionalização dos interesses, realizada pela mediação dos intérpretes políticos do Estado-nação, no sentido de que eles se orientem para fins de natureza pública, tal como entendidos por aqueles intérpretes, detentores da representação da razão. O interesse e o agir estão legitimados, desde que subsumidos a um pensamento que os organize por cima. Exemplar disso é o artigo 135 da Carta de 1937, a “Polaca”, ao prescrever que “na iniciativa individual, no poder de creação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representado pelo Estado” (grifos do autor). Sobre o interesse, um árbitro racional. E se ele é base material para o pensar, não será, contudo, a partir dele, e nem dos personagens que o portam, que o pensamento deve realizar a sua trajetória brasileira.

UMA FELIZ CONVERGÊNCIA...

Findo o Estado Novo, um novo capítulo na relação entre o pensar e o agir, o período entre 1945 e 1964, momento em que, de verdade, o agir pretende se constituir em pensamento. Vou ler um trecho que sempre cito em minhas análises sobre a política moderna brasileira, extraído da Declaração de Março de 1958 do Partido Comunista Brasileiro: “O caminho pacífico da revolução brasileira é possível em virtude de fatores como a democratização crescente da vida política, o ascenso do movimento operário e o desenvolvimento da frente única nacionalista em nosso país. O povo brasileiro pode resolver pacificamente os seus problemas básicos com a acumulação gradual mas incessante de reformas profundas e conseqüentes, na estrutura econômica e nas instituições políticas, chegando-se até à realização completa das transformações radicais colocadas na ordem do dia pelo próprio desenvolvimento

econômico/social da nação”.

Na aparência, uma volta a Nabuco, certamente que não ao Nabuco do pensar refratário ao agir,e que o nega a fim de que o pensamento se manifeste na sua pureza. Para ele, a civilização nos chegaria como obra do tempo, processo gradual e molecular, como os que nos chegam, silenciosos e quase imperceptíveis, do movimento da Terra, enquanto seus valores e ideais, ainda não generalizáveis, seriam cultivados pelas elites dos homens públicos, toda uma modelagem vazada em termos de uma necessária oposição entre os planos do ideal e os do real. A volta a Nabuco é apenas aparente na medida em que a Declaração de 1958 afirma uma relação de feliz convergência entre eles: a democratização crescente da vida política, o ascenso do movimento operário e o desenvolvimento da frente única nacionalista no país indicariam, no cerne do processo em curso, algo de intrinsecamente progressista, de democrático, significando a presença de um elemento transformístico, de caráter positivo, isto é, atuando a favor das forças da mudança social, como se inscrito no próprio “movimento da Terra”. Assim, se esse era o resultado que o pensamento produzia sobre o estado de coisas efetivamente existente no país, agir significava dirigir o movimento da Terra, que se evidenciava depois de desvendado por meio de uma operação intelectual.

Afinal, tinha-se descoberto, a contrapelo de Nabuco, uma relação de homologia entre pensar e agir, em que cada termo servia ao outro. E a afirmação clássica, que deve ser de 1961, de um dos grandes membros da intelligentzia da época, Álvaro Vieira Pinto, parodiando Lenin, que sem teoria do desenvolvimento não há desenvolvimento, pretendia significar a possibilidade de uma aproximação feliz entre o pensar e o agir, abrindo para a Nação, consciente da sua circunstância, o caminho para a construção da sua identidade. (Vale notar que, tendo mobilizado o Vieira Pinto, em Consciência e realidade nacional, de óbvia inspiração em Heidegger, ocorreu-me que, coincidentemente ou não, o filósofo alemão, em Que significa pensar?, se faz as mesmas perguntas que servem à organização dessa conferência. A propósito, sobre a obra magna de Vieira Pinto vale citar, por seu interesse, a recente tese de doutoramento, defendida no IUPERJ, de Norma Côrtes).

Era possível, pois, no período compreendido entre os anos de 45 e 64, conceber o interesse, particularmente o das grandes maiorias, como base de assentamento para a composição da idéia de Nação e para uma reforma democrático-popular do Estado. Um pensar que não toma distância do agir a fim de evitar a perda do seu mandato civilizatório, e nem o aceita apenas como matéria-prima administrada para os propósitos da modernização econômica, mas que é concebido a partir do interesse das grandes maiorias e da sua elevação em propósitos ético-morais.

... E UMA INFAUSTA SEPARAÇÃO

Isso é o que se perde com o golpe de 1964, que se, de um lado, vai importar na valorização do agir na esfera isolada da economia, um agir, portanto, puramente instrumental, cujos símbolos são a mobilização dos setores subalternos mais pobres do campo para o garimpo de Serra Pelada e para a colonização da Transamazônica, de outro, vai reduzir, pela violência política, a sociedade à imobilidade, mantendo-a em estado de infantilização cívica. Vivemos hoje sob a influência direta disso, de um intenso processo de modernização econômica que separou o agir do pensar, o público do privado, e que produziu o efeito de, no lugar de cidadãos, termos máquinas desejantes, os interesses mal compreendidos proclamados como virtudes necessárias a uma boa adaptação ao mundo do mercado, traços nefastos que sobreviveram à ditadura e que não serão fáceis de deslocar, em particular quando se considera que os novos seres da modernidade brasileira começam a sua história sem a memória, com freqüência porque a rejeitam liminarmente, das lutas e das construções intelectuais do passado.

Às ciências sociais brasileiras coube, por razões que não importam considerar aqui, o papel da produção de uma narrativa e de uma interpretação do país, servindo à sociedade com diagnósticos sobre a natureza do estado de coisas existentes, especialmente à época da ditadura militar. Os recentes avanços na institucionalização do trabalho científico não têm implicado, como muitos supunham, a perda desse veio, que, ao contrário, tem encontrado um número, cada vez maior, de praticantes entre os cientistas sociais. Decerto que dos intelectuais de hoje não se espera a pretensão de se fazerem substitutivos dos partidos políticos e dos movimentos sociais, mas deles se pode legitimamente esperar que honrem as tradições da USP e do ISEB dos anos 50 e 60, que sempre foram as de conceber um destino de afirmação para os brasileiros e aproximar a intelligentzia do seu povo. Os 25 anos do CEDEC nos pedem um compromisso como cientistas sociais, que interpreto no sentido de que devemos animar a saga dos brasileiros em continuar tentando construir uma sociedade livre, justa e fraterna, defendendo a sua história e seus valores dos que querem nos condenar a uma forma de pensar – a do pensamento único, que certamente não tem levado em conta a nossa forma de agir.

Nenhum comentário: