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Revista Brasileira de Ciências Sociais nº 25
Vera Telles
Como compreender que, depois de mais de cem anos de história republicana, ainda persista no Nordeste brasileiro a realidade da pobreza, da violência e do mandonismo local? Essa é a questão que Teresa Sales propõe neste artigo. Antes de recorrer às explicações conhecidas sobre as perversões do capitalismo brasileiro, indaga-se sobre as relações entre desigualdade social e cultura política. É pelo prisma das relações de mando e subserviência que o problema se arma. A submissão política, argumenta a autora, é elemento definidor da pobreza, sua raiz está na "cultura da dádiva" e é isso sobretudo que elucida as vicissitudes da cidadania brasileira. A questão é interessante e provocativa, sobretudo no modo como a autora propõe discutir as relações (nada evidentes, sempre problemáticas) entre cidadania e desigualdade social. Tem, ademais, o mérito de resgatar questões já clássicas na literatura especializada, retirando-as por assim dizer de uma jurisdição própria da questão agrária e também do assim chamado Brasil tradicional, para projetá-las no centro de um Brasil moderno e miserável. Não se trata tanto - apesar de o texto por vezes sugerir isso - de que a questão rural contenha a chave explicativa dos dilemas do Brasil atual. O que Teresa Sales nos propõe é que a pobreza rural - mais especificamente, a pobreza do Nordeste brasileiro - pode esclarecer algo da persistência de uma tradição que reproduz desigualdades, repõe mandonismo e subserviência e opera ao revés das concepções modernas de direitos e cidadania. A noção de cidadania concedida é introduzida para nomear essa continuidade na sua dimensão propriamente política, chamando a atenção para o fato de que proteção, favor e patronagem vêm ocupar o lugar de direitos civis inexistentes. Cidadania concedida é uma contradição em termos, reconhece a autora para esclarecer a seguir que a noção tem o propósito de "fazer realçar características importantes de nossa cidadania pretérita e atual e que são, ao mesmo tempo, parte constitutiva de nossa cidadania". A cidadania concedida deita raízes nas relações de mando e subserviência "cuja manifestação primeira se deu no âmbito do grande domínio territorial que configurou a sociedade brasileira nos primeiros séculos de sua formação". E se expressa na figura do homem livre e pobre, "que dependia dos favores do senhor territorial [...] para poder usufruir dos direitos elementares de cidadania civil", de tal modo que vida, trabalho, bens e mobilidade pessoal eram "direitos que lhes chegavam como dádiva do senhor de terras". Essa é a matriz que persistiu ao final da ordem escravagista, que atravessou toda a República Velha, que foi e continua sendo reposta no tradicional (e nem sempre bem entendido, argumenta) coronelismo, e que, ainda hoje, no Brasil moderno, é reatualizada nas relações de favor que articulam forças políticas locais e burocracias estatais.
No entanto, a noção de cidadania concedida traz alguns problemas que merecem um comentário. Antes de mais nada, seria preciso dizer que as relações descritas sob o signo da dádiva podem ser tomadas como o avesso da cidadania, seja qual for o conceito que dela se tenha. O problema aqui não é tanto a exigência de rigor conceitua) no plano da teoria. Quer me parecer que a noção de cidadania concedida tem no texto um sentido muito preciso no movimento da argumentação. Diria que é uma noção que faz sentido para quem está com os olhos voltados para os dilemas atuais da cidadania, questão que move a indagação da autora e a leva a reinterpretar tradições históricas e seus intérpretes. Daí o interesse pela obra de Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda, já que, cada qual à sua maneira, os três tematizaram exatamente aquilo que a interessa - a subserviência, diferente da obediência tratada pela ciência política, pois "definida nos termos do pedir, para além do obedecer", "implica necessariamente um provedor forte" e supõe o domínio rural sobre o qual se erguem poder privado, mandonismo, dádiva e favor. E portanto na obra desses autores que Teresa vai buscar as referências para compreender a cultura política de um país no qual "ou bem se manda ou bem se pede". Arriscaria dizer que o problema aqui está no fato de esses autores terem sido levados a sério demais. Melhor dizendo: no modo como os apresenta fica a impressão de que Teresa se deixou aprisionar na lógica argumentativa dos autores. E se isso é problemático é porque, assim me parece, não consegue escapar do que eu chamaria metaforicamente de uma "maldição das origens" (o latifúndio, o patriarcalismo, as raízes ibéricas). Com isso estou sugerindo que se tradições persistem, faltou problematizar essa persistência. E mais: diria que é na noção mesma de cidadania concedida que está a armadilha. Pois, tal como essa noção está formulada, ela neutraliza essa problematização ao sugerir uma espécie de simetria (em negativo, é certo) entre direitos e proteção, os primeiros sendo "garantidos" pelo mando - sendo na verdade sua extensão -, o avesso portanto da relação que os direitos constroem pelo estatuto de sujeito que conferem ao outro.
Essa é questão contida no texto, porém não formulada. Talvez se Teresa se tivesse detido na "contradição em termos" que reconhece na noção de cidadania concedida, se tivesse explorado a antinomia entre favor e direitos, proteção e cidadania, houvesse sido aberto um caminho profícuo para compreender o enigma brasileiro, de relações sociais que se estruturam sem a mediação dos direitos, de tal modo que continuam a ser regidas pelo arbítrio sem limites do poder privado, entre o favor e a violência, duas faces de uma mesma recusa da alteridade.
Talvez por aí seja também possível encontrar os fios que articulam a truculência dos conflitos rurais a que Teresa faz referência em certo momento e o caráter itinerante do trabalhador rural brasileiro, que busca escapar, pela migração, às relações de mando e subserviência, mas termina por contribuir para aprofundar desigualdades sociais. Arriscando-me em um terreno com o qual tenho pouca familiaridade, diria que violência e migração, tal como proposto por Teresa, poderiam ser vistas como expressão de um mundo social que se ordena sem as mediações representativas que os direitos constroem ou deveriam construir, de tal modo que resistências e recusas às opressões do mando privado são "resolvidas" no jogo bruto da força ou então por essa espécie de nomadismo de uma gente sem nome, com vidas que parecem regidas pela aleatoriedade dos destinos (e azares) de cada um. É certo que seria descabido formular as questões nesses termos quando a referência é a autarquia do mundo rural de décadas passadas. Mas já não o é tanto quando a referência é o Brasil atual, sendo que a questão que intriga, que suscita a reflexão, é precisamente a reiterada obstrução de uma dimensão pública que balize o jogo dos interesses e construa a medida a partir da qual identidades podem se constituir e sujeitos podem se firmar na trama mesma dos conflitos. Com isso não estou propondo explicações sobre questões que escapam muito às minhas possibilidades, mas tão-somente sugerindo que talvez seja o caso de examinar um pouco mais detidamente a noção de cidadania, pelo prisma mesmo que é proposto no texto, ou seja, o modo como as relações sociais são ordenadas e, por essa via, interrogar as evidências de tradições persistentes.
E isso me leva a um último comentário. Ao tratar do que define como "fetiche da igualdade", Teresa enfatiza a reprodução das desigualdades mediante um "encurtamento das distâncias sociais" que oblitera o conflito e se traduz na conciliação. É por essa via que resgata a idéia da "democracia racial" de Gilberto Freyre, essa peculiar mistura das raças que é "um dos fatores que tornam tão nebulosas as nossas diferenças sociais". E também o "homem cordial", de Sergio Buarque, para enfatizar a informalidade no convívio social, que neutraliza diferenças sob a ética familiar do mundo privado. A questão é mais do que pertinente. No entanto, parece-me imprópria a idéia de um fetiche da igualdade, já que não existe aqui algo próximo a uma igualdade idealizada, o "encurtamento das distâncias" sendo, ao contrário disso, um modo de reposição das hierarquias próprias do mundo privado, a tradução adocicada das relações de mando e subserviência por meio das quais desigualdades se processam. A questão na verdade poderia ser interpretada em uma outra chave, chave ademais que o próprio Sergio Buarque sugere ao contrapor cordialidade e civilidade, antinomia que retrata exatamente as dificuldades de se romperem os padrões privativistas do mando patriarcal. Para colocar nos termos da nossa discussão, é aqui também que as vicissitudes da cidadania brasileira se especificam, já que na ausência de uma esfera pública que firme os direitos como medida nas relações sociais, estas tendem a ser inteiramente regidas pela moral privada do "mundo da casa". E é aqui, mais uma vez, que talvez se possa recolocar a questão proposta por Teresa, não na linha de continuidade que sugere a noção de cidadania concedida, mas, ao contrário, na tensão que podemos pressupor nas relações entre cidadania e tradições, sendo estas repostas exatamente na ausência de uma medida de igualdade que os direitos constroem e pela qual as hierarquias do mundo privado podem, ao menos virtualmente, ser dissolvidas para se transfigurarem nas diferenças de classe e na lógica propriamente moderna de um conflito social mediado pelas práticas de representação.
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