sábado, 21 de março de 2009

Chauí - O CEDEC e o pensamento político brasileiro

Extrato de palestra proferida pela Prof. Dra. Marilena Chauí em seminário realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), em 26/04/2006, em homenagem aos 30 anos do CEDEC. Publicada na Revista Lua Nova, nº 71, pp. 173-228, São Paulo, 2007.

Quando era menina e adolescente, aprendi História do Brasil, e depois, na universidade, tive, na disciplina de Sociologia, ministrada para o curso de Filosofi a, uma pequena introdução à economia e à Ciência Política. Vou contar, primeiro, qual foi minha experiência como aluna, como aprendi História na escola – não sei se vocês aprenderam assim, espero que não: Descobrimento, Capitanias Hereditárias, Governo Geral, Inconfidência Mineira, Família Real, Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarve, Independência, Primeiro Reinado, Regência, Segundo Reinado, Abolição, Proclamação da República. Ou seja, o que aprendi na escola é a

história do Estado brasileiro. Quais eram os textos? À direita, Capistrano de Abreu, Oliveira Lima, Alberto Torres, Oliveira Viana, Miguel Reale, Plínio Salgado e outros; à esquerda, Caio Prado, Celso Furtado, Richard Morse, Emília Viotti da Costa, Fernando Novaes, Wanderley Guilherme dos Santos, Werneck Vianna. Surpreendentemente, dos dois lados, a História do Brasil é contada como a história do Estado Brasileiro.

Agora, conto o aprendizado na universidade. Novamente, a história econômica e a história social e política do Brasil são a história do Estado brasileiro.

É assim que se passa nos textos do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e nos cursos e nas teses das Ciências Sociais da USP. O Iseb, que se articulou no Rio de Janeiro, ligado à presidência de Juscelino Kubitschek, para propor um programa de desenvolvimento para o Brasil, é criado por intelectuais comunistas, da esquerda não-comunista, liberais e progressistas. Os textos do Iseb trabalham com a ideologia desenvolvimentista e propõem o desenvolvimento do Brasil a partir do Estado. As Ciências Sociais da USP – Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni – escrevem sobre o negro na sociedade de classes, mas o negro é apresentado por eles como um objeto passivo, que sofre a violência branca e nunca como um agente social ou político.

Dessas Ciências Sociais, acrescidas da Economia, vem o Cebrap e, nele, a Teoria da Dependência, na qual os agentes históricos ou os sujeitos históricos são o capital nacional, o capital internacional e o Estado; não faz parte dessa teoria o proletariado, que sequer é mencionado. Numa palavra, a sociologia paulista produziu uma explicação sobre o Brasil e a AL na qual não entra a luta de classes. Não só isso. Como tudo é pensado a partir do Estado, aqueles que estavam “lá embaixo”, que a Sociologia chama de “as classes subalternas” – acho uma beleza essa terminologia da Sociologia –, essas não entram nessa famosa teoria que guiou a esquerda da América Latina durante anos a fio. Não é casual, portanto, que os teóricos e praticantes da guerrilha propusessem a revolução como a tomada do Palácio de Inverno – que foi o que os bolcheviques fi zeram –, ou seja, a idéia de que a revolução é a tomada do aparelho do Estado.

É sob essa perspectiva que falo no Cedec como inovação conceitual, como uma verdadeira revolução no modo de pensar o Brasil.

Tenho aqui o primeiro livro que o Cedec publicou, e foi a primeira tentativa que fiz de estudar o Brasil. Vou pedir a vocês permissão para ler um trechinho, no qual tento compreender como a História e as Ciências Sociais eram feitas no Brasil. Peço desculpas de citar um texto meu, mas como ele é fruto do trabalho do Cedec, acho que pode ilustrar o que estou querendo dizer. O trecho é o seguinte:

“Mesmo não contando com a multiplicidade de interpretações, percebi que todas diferem, seja pela escolha das determinações que decidem o curso dos acontecimentos, seja pela maneira de combinar as determinações. Todavia, o arcabouço conceitual empregado é quase sempre o mesmo e possui os seguintes traços gerais [isso vale para os historiadores, para os sociólogos, para todo mundo]: 1) ausência de uma burguesia nacional plenamente constituída, tal que alguma fração da classe dominante possa oferecer-se como portadora de um projeto universalizante que legitime sua hegemonia sociopolítica. Não que tais frações de classe deixem de ter seus próprios interesses e de os reconhecer como seus através de práticas específi cas, e sim que nenhuma delas tem condições para pôr-se como universal ou como classe dirigente; 2) ausência de uma classe operária madura, autônoma e organizada, preparada para propor e opor um projeto político que desbarate o das classes dominantes fragmentadas. Não que a classe operária esteja passiva, mas sim que suas formas de luta são inoperantes para pô-la explicitamente na cena política na qualidade de um ator principal; 3) presença de uma classe média urbana de difícil definição histórico-sociológica, mas caracterizada por uma ideologia e por uma prática heterônomas e ambíguas, oscilando tanto entre uma posição de classe atrelada às frações da classe dominante, quanto radicalizando-se à maneira pequeno-burguesa, atrelando-se à classe operária para emperrá-la e frear sua prática revolucionária; 4) as duas primeiras ausências, no que tange às classes fundamentais, e o radicalismo inoperante, no que diz respeito à classe média urbana, engendram um vazio de poder que será preenchido pelo Estado com apoio de setores das Forças Armadas. O Estado surge, pois, como único sujeito político e como único agente histórico real, antecipando-se às classes sociais para constituí-las como classes do sistema capitalista. O Estado cumpre essa tarefa transformando as classes sociais regionalizadas em classes nacionais, exigindo que todas as questões econômicas, sociais e políticas sejam encaradas como questões da nação. Nascido do vazio político, pela ausência das classes fundamentais, o Estado é o sujeito histórico do Brasil; 5) no tocante à classe operária, mesmo quando admitida como ameaça à dominação burguesa, a ação da Terceira Internacional e do prestismo, de um lado [não é o que eu penso, os teóricos é que falam], a importação do anarquismo e do anarco-sindicalismo, de outro lado, conjugados com a origem imigrante e camponesa dos proletários [essa forma grosseira como coloco aqui aparece de modo sofisticado em vários cientistas sociais, mas ela também aparece dessa forma em muitos textos], desviam a classe da sua tarefa histórica e culminam com o populismo. Do lado de cima, há o vazio, e do lado de baixo, o desvio. Explicam-se os dois na medida em que o capitalismo no Brasil é atrasado, tardio ou desigual e combinado face ao capitalismo internacional, de sorte que a conseqüência não se faz esperar. O Estado é a fonte da modernização e é ele que terá que promover o desenvolvimento capitalista, que é a finalidade da história mundial; 6) no que concerne à formação das ideologias, o quadro anterior revela que nenhuma das classes pode produzir uma ideologia propriamente dita, isto é, um sistema de representações e de normas particular e dotado de aparente universalidade capaz de impô-lo à sociedade como um todo, de sorte que tanto o liberalismo, quanto o autoritarismo nacionalista, como os projetos revolucionários, são incapazes de exprimir, seja na forma do falso, seja na forma do verdadeiro, a realidade brasileira. Assim sendo, torna-se inevitável que o ideário liberal, o ideário autoritário e o ideário revolucionário sejam importados e adaptados às condições locais, resultando disso que, no Brasil, as idéias estão sempre fora do lugar.”

O que preocupa nesse quadro é que, apesar da ênfase diferenciada que os intérpretes dão aos aspectos mencionados ou à questão da classe média, ou das oligarquias etc, em qualquer das interpretações há dois pontos problemáticos. O primeiro deles, em geral malgrado o próprio autor, é o pressuposto implícito: porque o capitalismo tem de se desenvolver, mas o faz com atraso e tardiamente, o Estado é obrigado a assumir a forma e os compromissos que assume. O segundo é o de que – isso também malgrado os próprios autores – o Estado assume o papel de sujeito histórico porque a luta de classes não chega a se exprimir de maneira suficientemente nítida no interior da sociedade civil. Em qualquer dos casos, porém, a conclusão é a mesma: o sujeito histórico é o Estado e não as classes sociais e a luta de classes.

Esse quadro é preocupante porque deixa entrever que, guardadas todas as diferenças e matizes entre os autores, no plano descritivo e interpretativo a visão do Estado e da sociedade presentes à esquerda e à direita não são muito diferentes. A diferença se reduz ao seguinte: os intérpretes à esquerda dizem que, no Brasil, o autoritarismo teve que ser a solução para os problemas do país, enquanto à direita se diz que deve ser a solução.

Afora essa pequena diferença entre o dever ser e o ter que ser, as análises à direita e à esquerda são quase idênticas.

A impressão deixada pelo arcabouço conceitual empregado é a de que os intérpretes de esquerda não trabalham com a idéia de contradição, mas, como os de direita, com a de privação, de falta ou de ausência. De maneira que os períodos históricos e a sociedade brasileira

são explicados por aquilo que lhes falta e não por aquilo que os engendra. O Brasil é explicado segundo lhe faltem isso e aquilo, ou seja, na cabeça dos autores está a sociedade capitalista européia como paradigma de uma realidade completa em comparação com a qual a brasileira é lacunar e incompleta e o Estado vem preencher a lacuna ou a privação.

Ora, o que o Cedec propõe, não só quando ele agrega todos os que são contra a ditadura, mas quando agrega várias tendências de esquerda e quando chama a si os estudos fragmentados que estão sendo feitos sobre os movimentos populares e os movimentos sociais, fazendo as publicações, as revistas, os livros? Propõe uma mudança de foco da análise sobre o Brasil. Ou seja, o social entra em cena novamente. Os estudos, os seminários, os debates, as publicações, as pesquisas do Cedec, ou de pessoas que fazem esse trabalho nas universidades, em outros centros, mas estão vinculadas ao Cedec, o que todos dizem é: a sociedade brasileira existe, as classes sociais existem e a luta de classes existe. Nascem os primeiros trabalhos sobre os movimentos sociais e os movimentos populares, temas até então inexistentes na História e nas Ciências Sociais brasileiras.

Ora, isso tem conseqüências políticas (e elas eram o que interessava ao Cedec, sobretudo ao Weffort): quando o Estado deixa de ser o sujeito histórico e quando a transformação histórica deixa de ser pensada como tomada pelo Estado, quando os movimentos sociais, os movimentos populares, os movimentos sindicais, a cultura popular, a questão dos partidos políticos, as formas sociais e políticas da organização surgem como os novos sujeitos históricos ou como um sujeito histórico coletivo, como disse Eder Sader, há uma redefinição da prática social transformadora. Aparece, tanto no plano do trabalho industrial como nas demais instituições sociais, o tema da autogestão em oposição ao tema sociológico da organização. E, o plano político, o tema da autonomia em oposição ao tema leninista da vanguarda. Com esses temas, entra em cena a discussão intensa sobre a noção de participação. Com a proposta da autogestão do lado do trabalho, da autonomia dos movimentos sociais e populares, do lado da sociedade, e da participação, do lado social e político, o Cedec encontrou os três elementos ou as três determinações que lhe permitiram fazer uma reflexão sobre a relação entre democracia e socialismo. Por isso mesmo, contrariamente a Bobbio e Laclau, nós, do Cedec, consideramos que democracia e socialismo são inseparáveis.

O passar do tempo fez seu trabalho. Hoje, o legado do pensamento inicial do Cedec está incorporado nas reflexões das Ciências Sociais e da Filosofia Política brasileiras e contribuiu para a defesa e concretização das práticas de participação política.

Obrigada.

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