sábado, 21 de março de 2009

RESENHA- Edison Bariani.

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Francisco Weffort. Formação do pensamento político brasileiro. Idéias e personagens. São Paulo: Ática, 2006. 360p.

Em seu mais recente livro, Francisco Weffort propõe-se oferecer uma “introdução ao pensamento político brasileiro”. Para tanto, esboça uma linha de formação deste pensamento por meio de alguns autores eleitos como representativos, com base na exemplaridade de idéias e na premissa de que “[...] as idéias se revelam não apenas nas palavras, mas também nas ações” (WEFFORT, 2006, p. 7).

Os protagonistas desse processo de formação são, assim, não somente aqueles que exerceram “[...] a precedência e a influência na formulação de idéias relevantes para a formação do povo e do Estado”, mas, também, os que exerceram “influência prática” sobre estes temas em sua época, ou seja, os “homens de ação” (WEFFORT, 2006, p. 12) [1].

Daí a presença do Padre Vieira, Verney, José de Alencar, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira Vianna, os isebianos (mormente Hélio Jaguaribe), e também dos jesuítas, do Marquês de Pombal, José Bonifácio, Bernardo de Vasconcelos, etc. Significativas são as lembranças de Bernardo de Vasconcelos, Alencar e Oliveira Vianna, por vezes esquecidos, e, mais ainda, a de Rômulo de Almeida, personagem muito influente no pensamento e construção institucional do Brasil de meados do século XX [2].

Nesse percurso, Weffort (2006, p. 7-8) segue os indicativos de “[...] algumas particularidades da história das idéias brasileiras quando comparada com a européia”, a saber: 1) “[...] que nossas elites pensaram o Brasil durante muito tempo como um ‘país sem povo’”; 2) A “[...] emergência tardia do Estado, como realidade e como objeto de pensamento”; 3) “[...] a herança de uma concepção medieval da totalidade da vida social, com sua característica mistura de aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos”.

Weffort (2006, p. 323), respondendo a indagação do livro de Faoro (1994) — do qual é profundamente devedor — sobre se existe um pensamento político brasileiro, assevera a efetividade e originalidade deste pensamento, ainda que caracterizado como “extensão do pensamento luso”. Formado a partir de raízes ibéricas, o pensamento luso-brasileiro tem, segundo o autor, como “peculiaridade fundamental” o fato de que “[...] seu tema primordial não vem do rompimento de modos antigos do poder, como na Europa, mas do contato dos europeus com culturas e povos que desconheciam” (WEFFORT, 2006, p. 326).

Dispondo do instrumental totalizador advindo de sua herança medieval, o pensamento ibero-americano viu-se às voltas, inicialmente, com a existência de uma humanidade que desconhecia; já o pensamento luso-brasileiro é instado — desde seus primórdios — a lidar com a sua primeira questão: a do “reconhecimento dos povos novos”. Assim, a abordagem totalizadora e a necessidade de um entendimento amplo dos vários aspectos (sociais, culturais, políticos) da vida colonial conduziram a uma indistinção dos aspectos propriamente políticos, entendidos como autônomos — autonomia essa considerada típica das sociedades modernas (como a Inglaterra, França e Holanda).

Frente à necessidade inicial de entender quais eram os sujeitos político-sociais, o pensamento luso-brasileiro recorreu a interpretações generalizantes da vida social, inaugurando uma tradição. Nessa tradição, a idéia — posta como recorrente — de que as elites pensantes no Brasil elidiram a presença do povo e relevaram o papel do Estado é revista pelo autor [3].

Para Weffort (2006, p. 329), “[...] o povo é o tema primordial da história das idéias no Brasil, o tema relativo à formação do Estado chegou a nós com enorme atraso”, e, ao contrário do que comumente era afirmado, “[...] o povo e a cultura brasileira, com sua imensa diversidade, formaram-se aqui antes do Estado, que só começou a ser construído com a chegada de D. João VI e com a independência, depois de três séculos de duração da colônia” [4].

Debruçadas sobre a questão da formação, as primeiras obras que “[...] começaram a fechar o círculo de indagações sobre a nova humanidade” foram as de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Jr., e, nesse sentido, “[...] os fundadores do Iseb foram legítimos sucessores, aos quais incumbiu retomar o tema das origens coloniais e da formação do povo”. Entre os anos 1920 e 1950, esses pensadores deram a perceber que “[...] o grande problema das elites na formação da sociedade brasileira era menos o de criar um povo do que o de reconhecer o povo realmente existente e que, aliás, nessas mesmas décadas, começava a emergir para as luzes do cenário político”; desse modo, “[...] depois de 1950 — e muito por influência dessas levas de pensadores de após 1920 e 1930 — [é] que se desenvolveram no país a ciência política, a sociologia, a antropologia e a economia, como ciências” (WEFFORT, 2006, p. 328) [5].

Emergem aqui indicativos de uma variação no leme das proposições do autor. As menções ao “povo” e — mais ainda — ao “povo realmente existente” nem de longe lembram suas formulações sobre o “populismo”. O Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e a figura de Hélio Jaguaribe (referência obrigatória do livro), anteriormente vistos com desconfiança, como nacionalismo fantoche e ideologia populista, tornam-se exemplos de sensibilidade política; malgrado a figura de Guerreiro Ramos, tomado como voluntarista político que negligencia — em favor do Estado — a herança histórico-cultural da formação nacional por meio de fatores socialmente significativos, como a mestiçagem, a sensibilidade religiosa católica e a unidade de idioma (WEFFORT, 2006, p. 209-10).

Também o reconhecimento de um papel objetivamente criador das obras dos “intérpretes” e “ensaístas” distancia-se das posições institucionalistas e cientificistas que — mormente no discurso uspiano — faziam da universidade (e uma delas em particular) o berço das elaborações disciplinares e científicas sobre a vida social [6].

A formação do pensamento político brasileiro (original), ancorada num quadro cultural autônomo em imbricação à realidade social (FAORO, apud WEFFORT, 2006, p. 323), tem — para Weffort — como características definidoras: a herança ibérica (entendida simplesmente como “medieval”) e as conseqüências dessa herança (interpretação social genérica, hierarquia, desigualdade, discriminação, etc.) no tratamento das contingências da integração de uma nova humanidade (indígenas), de elementos ‘estranhos’ à ordem social legítima (escravos negros) e de párias ou marginalizados (judeus, pobres).

A assimilação desses contingentes deu o tema e o conteúdo do pensamento político brasileiro, assim como a herança ibérica/medieval legou a forma totalizante dos aspectos da vida social, inviabilizando a autonomia do político como aspecto autônomo de análise — expressão da ausência de modernidade.

Nesse quadro, é nítida a importância dada pelo autor às raízes, ao germe ibérico/medieval na formação do pensamento político, seja em termos de conteúdo, seja de forma. Essa herança torna-se — descontada certa evolução — o elemento amalgamador do pensamento político brasileiro, configurando suas formas.

Todavia, indelevelmente presente na origem, não teria essa herança se desgastado e se modificado no próprio processo de formação e desenvolvimento do pensamento político brasileiro? Prova disso não seria o fato da tradição de abordagem totalizadora e a ‘falta de autonomia’ do aspecto político serem menos ranço medieval e traço de ausência de modernidade que, propriamente, transformação e aperfeiçoamento (por que não?) de uma herança cultural rica e indicativa dos meios próprios e originais de chegada à modernidade? [7]

Talvez prisioneiro do que Marc Bloch (s.d., p. 31) — parafraseando Francis Bacon — chamou “ídolo das origens”, Weffort envereda pela explicação da existência de um pensamento político brasileiro pela reversão histórica e, de olhos voltados para a civilização hegemônica, remonta às origens, como se estas contivessem o segredo do desenvolvimento futuro (e em dada e única direção à ‘modernidade’), realizando em ato a potência contida — essa, sim, forma aristotélica de causalidade e finalismo verdadeiramente medievais.

Deve-se reconhecer que — na abordagem do autor — temas e tratamentos foram acrescentados no processo de formação (povo, Estado, desigualdade, pobreza); entretanto, os traços do pensamento político aqui radicado ainda são indefectivelmente tomados à herança ibérica/medieval, não em termos de legado inicial, mas de marcos de contenção.

Do mesmo modo, remeter a autonomia do aspecto político ao ingresso na modernidade, mais que aclarar uma possível herança medieval, pode ser forma de diminuir a ansiada autonomia do pensamento político brasileiro, tornando-o caudatário da preponderância cultural européia e estadunidense.

Assim, deprecia-se uma rica tradição de visão totalizante da vida social (e política, por definição) e atrela-se aquele pensamento aos ditames circunstanciais da necessidade de afirmação, não do político — pois, como parte da existência social, este é indissociável dos outros aspectos (culturais, econômicos, sociais em sentido estrito...) —, mas da política, que, sob o disfarce de ‘ciência autônoma’, atua como garantidora de um nicho institucional e, ainda, como ideologia propositora de inefáveis escolhas (racionais, púbicas, etc.) e seus supostos ‘científicos’.

Por fim, permanece uma dúvida: se a influência ibérica/medieval — logo antimoderna — define o pensamento político brasileiro, o dilema a ser enfrentado seria o de abandonarmos nossa herança ou renunciarmos à modernidade? A tragicidade da sentença euclidiana da “condenação à civilização” parece dar lugar ao arrivismo das reações adaptativas.

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Edison Bariani é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/Araraquara.

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Notas

[1] O expediente de considerar como representantes do pensamento político e social homens de ação, mais ligados à práxis que ao logos, tem antecedentes nas obras de Faoro (1994) e Ramos (1961).

[2] Alencar, não obstante, é lembrado mais pela polêmica com Nabuco, pela condição de “homem de ação” e romancista do indianismo, do que como arguto pensador político do sistema representativo do II Império — ver O sistema representativo, publicado por Alencar em 1868.

[3] Embora nitidamente presente, é questionável a generalização de tal idéia para as matrizes do pensamento político brasileiro. Está, obviamente, presente numa linhagem que conta com muitos dos conservadores do Império, viajantes e cronistas (como Saint-Hilaire, Louis Couty), Tobias Barreto, Alberto Torres, etc.; malgrado o sentido orgânico e mesmo de relativa homogeneidade cultural contida na noção de povo, estaria presente também em Silvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna, Guerreiro Ramos (no seu momento inicial). Entretanto, é difícil estender tal idéia para Gregório de Matos, Frei Caneca, Tavares Bastos, Manoel Bonfim, e talvez mesmo para Joaquim Nabuco e o Padre Vieira.

[4] Posta nesses termos, a revisão feita pelo autor arrisca-se a efetuar apenas uma inversão de posições: ao anterior privilégio dado ao Estado como objeto de atenção, contrapõe uma precoce apologia da ‘sociedade civil’ (em sua precariedade histórica), tomada como vértice das mudanças sociais.

[5] Apesar desse desenvolvimento, o autor lança mão de poucos trabalhos de comentaristas e críticos sobre os autores e períodos analisados, preferindo as fontes primárias e relegando importantes contribuições do pensamento social e político brasileiro.

[6] As noções de populismo, massas e classes dão lugar — no livro — à afirmação do povo. Em contraste, convém lembrar uma passagem de obra anterior do autor: “Parece-nos desnecessário insistir sobre a importância das massas nesta fase da história brasileira [anos 1950] em que tem vigência uma Constituição democrática. Diversos escritores, em particular os ideólogos do nacionalismo, fizeram-no o bastante para que a noção democrática do povo como substrato real do poder se tornasse, naquela época, um dado da consciência política brasileira. Os nacionalistas, em realidade, chegaram a ir mais longe, pois viram no povo a categoria essencial, a realidade básica de nossa história e estabeleceram, a partir daí, a ideologia política e mesmo uma filosofia. Não pretendemos tanto nem nos parece que a noção de povo seja fundamento sólido para tudo isto. Em verdade, a exaltação nacionalista do povo confunde, ao invés de esclarecer, o sentido real da participação política das massas” (WEFFORT, 1980, p. 18). Também os anteriormente “escritores” e “ideólogos” tornam-se agora pioneiros das ciências sociais.

[7] Cabe mencionar aqui o exemplo da forte influência do tomismo no Brasil — e sua particular abordagem da totalidade da vida social, orientada por uma combinação de racionalismo e convicção espiritual —, que, mais que uma ‘herança medieval’, reformulou-se e adquiriu formas próprias e distintas ao longo da história do Brasil. Para uma exposição tomismo no Brasil, ver CAMPOS (1998).

Referências bibliográficas

BLOCH, M. Introdução à história. Lisboa: Publicações Europa-América, [s.d.]. (Coleção Saber).

CAMPOS, F. A. Tomismo no Brasil. São Paulo: Paulus, 1998.

FAORO, R. Existe um pensamento político brasileiro?. São Paulo: Ática, 1994.

RAMOS, A. G. A crise do poder no Brasil: problemas da revolução nacional brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1961.

WEFFORT, F. C. O populismo na política brasileira. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. (Estudos Brasileiros, 25).

----------. Formação do pensamento político brasileiro: idéias e personagens. São Paulo: Ática, 2006.

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