sábado, 21 de março de 2009

Lourenço Dantas Mota - José Bonifácio fundador do Brasil

Revista Nossa América, nº 24, Memorial da América Latina, São Paulo, 2006

José Bonifácio: fundador do Brasil

Formulador da Sociedade Civil dos Trópicos

CARLOS GUILHERME DA MOTA

José Bonifácio, relido em 2006, faz-nos pensar nos ínvios caminhos da História no Brasil. Monarquista e constitucionalista ferrenho, a figura mais importante e visível da jovem Nação (tanto quanto Benjamin Franklin, "the Doctor", nos Estados Unidos), nosso sábio foi apeado do poder, aviltado, exilado em Talence, nos arredores de Bordeaux, na França. Fez-se a independência, mas escravos e índios continuariam no limbo de sua "incorrigível barbaridade", sem saber exatamente qual era seu lugar no mundo que o português criou...José Bonifácio de Andrada e Silva é uma referência fundamental na formação da nacionalidade brasileira, tanto no plano político-social como no cultural. Embora tenha escrito relativamente pouco, além de seus deixou estudos de Mineralogia e Metalurgia, traduções e poesias, inúmeros artigos (inclusive publicados na Europa), apontamentos, ensaios, correspondência e notas pessoais importantes.

Nascido em Santos em 13 de junho de 1793, filho de comerciante bem colocado na cidade, estudou em São Paulo, depois na Faculdade de Direito de Coimbra, formando-se também em Filosofia e Matemática naquela universidade. Em 1789 ingressou na Real Academia das Ciências e Letras de Lisboa, da qual se tornaria o secretário. "Mr. d'Andrada", como era conhecido, longa viagem de estudos pela Europa: Paris, Freiburg, Áustria, Itália e, por mais de dois anos, Suécia e Dinamarca. Organizou a Cadeira de Metalurgia da Universidade de Coimbra, ocupou vários postos técnico-administrativos e, como oficial do Corpo Voluntário Acadêmico, lutou contra as tropas de Napoleão que invadiram Portugal. Publicou então uma série de estudos sobre Mineralogia e Agricultura, retornando ao Brasil somente em 1819, onde continuou suas pesquisas mineralógicas em São Paulo com seu irmão Martim Francisco.

Antônio Cândido, em sua clássica Formação da Literatura Brasileira, chamou atenção para a mudança de modos de atuação e estilos dos intelectuais nascidos na ex-colônia com a reviravolta desencadeada pela transferência da Família Real em 1808, o “acontecimento mais importante de nossa vida intelectual e política.” Foi o caso de Bonifácio, já famoso na Europa. (Ver o capítulo “As condições do meio”).

Com efeito, o cientista volta ao Brasil com a companheira de origem irlandesa Narcisa O'Leary, a filha Gabriela e a filha que tivera com uma amante, Narcisa Cândida, criada por sua mulher. Em 1820, obteve tardiamente o título de Conselheiro, conferido por D. João VI. Com a Revolução do Porto em 1820, foi nomeado presidente da Junta Provisória de São Paulo, escrevendo a importante Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório de São Paulo a seus Deputados, que deveriam representar São Paulo nas Cortes de Lisboa. Durante o processo de Independência, exerceu papel decisivo junto a D. Pedro I, instando-o em 1822 a desobedecer as ordens de Lisboa.

Após 1822, como ministro, arquitetou a política interna e externa, esboçando - em menos de dois anos decisivos - o projeto do novo Estado nacional. Desentendeu-se logo com D. Pedro, e trombou com os interesses dos escravocratas e dos "negreiros". Em 1823 foi eleito deputado à Assembléia Geral Constituinte, atuando durante um curtíssimo período, quando propôs dois projetos de lei importantíssimos: o projeto sobre a integração dos índios na sociedade brasileira e, mais arrojado, o projeto sobre a abolição da escravatura e a emancipação gradual dos escravos.

A 12 de novembro de 23, por discordar do projeto de Constituição, D. Pedro I fecha a Constituinte. Bonifácio foi preso, aviltado e exilado para a França, com seus irmãos Martim e Antonio Carlos (também deputados exilados), passando por Vigo (Espanha) e chegando a Bordeaux em 5 de julho de 1824. Aí, vigiado, vive com dificuldades, publicando suas Poesias Avulsas e Ode aos Gregos.

Ao retornar do exílio ao Brasil, em situação dramática, sua mulher Narcisa falece no navio durante a viagem de retorno. O imperador Pedro I, forçado a abdicar em 1831, sem melhor alternativa, indica-o tutor de Pedro II, com 5 anos. Nesse ano, sob o pseudônimo arcádico de Américo Elísio, publica O Poeta Desterrado. Ode escrita em Bordéus em 1825. No ano seguinte foi destituído da tutoria de Pedro II, por força do ministro da Justiça, o padre Diogo Antonio Feijó, que o acusara de tentativa de levante armado no Rio em 1831. Em 1833, é definitivamente afastado da tutoria, retirando-se para Niterói, na condição de preso “por conspiração e perturbação da ordem pública".

Em 1835, julgado à revelia, é absolvido, vindo a falecer em Paquetá a 6 de abril de 1838.

O inquieto José Bonifácio, leitor de clássicos, cientista e tradutor de Humboldt, defendeu a introdução da vacina, do sistema métrico, da meteorologia, preocupou-se com os problemas da população brasileira, da reforma agrária, da língua, da cultura, do voto dos analfabetos (assegurados na Instrução de 19 junho de 1822), da indústria, da agricultura, da universidade. O projeto de José Bonifácio sobre a abolição do tráfico e a escravidão constitui a mais importante obra brasileira contra o tráfico, "revelando sua grandeza de estadista".

O Contexto

Criar uma sociedade civil nos trópicos constituía tarefa complicada, pois o Brasil era uma colônia de exploração e não de povoamento.

Durante o processo de descolonização, as revoluções de independência das ex-colônias inglesas e ibéricas foram decisivas. No entanto, o nascimento do Brasil ocorreria sob a preeminência inglesa, com a permanência da dinastia dos Braganças que, na fuga das tropas de Napoleão, atravessaram o Atlântico escoltados pela armada britânica.

Bonifácio somente regressaria em 1819, já com 56 anos, após 36 anos longe do Brasil. Participou do processo de tentativa de consolidação do império luso-brasileiro, ultrapassada pela Revolução liberal de 1820 em Portugal, recolonizadora, e pela Revolução da Independência no Brasil.

No caso do Brasil da Independência, antecipando Rondon, e também Freyre, Bonifácio entende que:
"o mulato deve ser a raça mais ativa e empreendedora, pois reúne a vivacidade impetuosa e a robustez do negro com a mobilidade e sensibilidade do europeu; pois o índio é naturalmente melancólico e apático, estado de que não sai senão por grande efervescência das paixões, ou pela embriaguez; a sua música é lúgubre, e a sua dança mais ronceira e imóvel que a do negro".

Daí entender-se, hoje, por que seus principais textos -os mais coerentes em termos de um programa e de uma teoria do Brasil de todo o século XIX- versem sobre os índios e os negros na ex-colônia. Para Bonifácio, líder ilustrado que conhecera Paris (1790) durante a Revolução Francesa, impunha-se eliminar o cancro da escravidão e redefinir o papel do elemento nativo, para ele o mais autenticamente "nacional".

A Questão dos Índios

A questão do elemento indígena ocupa importante espaço nas teorias de José Bonifácio. Com efeito, a integração dos índios ao Estado-Nação projetado aparece de saída no documento que o deputado apresentara na fervente Assembléia Constituinte em 1823, da qual, pouco depois, sairia preso para o exílio.

O Estado português decretara guerra de extermínio, desde o fim do século anterior, a tribos como as dos botocudos e bugres. Daí a importância ainda hoje desse documento: em 1910, o jovem Tenente Coronel Cândido Mariano Rondon, ao inaugurar o Serviço de Proteção ao Indio, retomou as idéias propostas por José Bonifácio sobre a civilização dos índios. Inspirava-se, Rondon, nas teses dos republicanos positivistas que revalorizaram o desconsiderado papel dos Andradas na Independência.

Bonifácio, político hábil, ao querer tornar dominante na Constituinte sua política indigenista, também exibe aos autóctones, na aplicação dessa política, a superioridade "das altas idéias do nosso poder". Ou seja, da superioridade de uma cultura que já utilizava "máquina elétrica com aparelhos precisos", procurando demonstrar as "experiências mais curiosas e belas da eletricidade, e igualmente fósforos e gás inflamável para o mesmo fim”, para impressioná-los.

Projeto para a Civilização dos Indios

O documento de Bonifácio se divide em duas partes. Dentro de sua teoria racionalista, primeiro constata os problemas; depois, propõe soluções. Na primeira parte, apresenta uma série de comentários sobre a complexidade da política indigenista e as dificuldades de aplicação das medidas que iria propor. Na segunda, desenvolve 44 propostas para a "pronta e sucessiva civilização dos índios, que a razão e a experiência têm ensinado".

Homem das Luzes, tudo expõe com critério e lógica, dentro de uma visão do humanismo cientificista, baseado na razão, na experiência na idéia de progresso, como Voltaire. Cientista, não adota falsos princípios cristãos "corrompidos" para envolver os nativos ("porque com o pretexto de os fazermos cristãos, lhes temos feito e fizemos muitas injustiças e crueldades").

Quanto à situação em que se acham, faz uma série de observações que, embora marcadas pelo reformismo do despotismo esclarecido, revelam os juízos de uma sociedade ainda presa aos valores estabelecidos, europeizada, branca pré-capitalista. Daí dizer serem os "índios povos vagabundos", envolvidos em guerras contínuas e roubos, não terem freios religioso ou civil, sendo-lhes "insuportável sujeitarem-se a leis, e costumes regulares".

Mas o deputado das Luzes mostra o outro lado da mesma questão vista a partir do mau comportamento dos brancos. O medo dos indígenas derivaria dos cativeiros antigos, do desprezo com o qual foram tratados, "o roubo contínuo de suas melhores terras", os serviços a que os sujeitamos, pagando pouco ou nenhum salário ("jornais"), alimentando-os mal, "enganando-os nos contratos de compra, e venda, que com eles fazemos".

O deputado, consciente de seu papel na construção da nova ordem, observa que os negros da África, apesar de terem contato há séculos com os europeus, ainda estão "quase" no mesmo "estado de barbaridade" que os "nossos índios do Brasil". Sua lógica é notável, nesse hábil e dialético movimento de rotação de posições. Algo de Rousseau ronda sua teoria das civilizações e das culturas.

O índio é diferente do homem civilizado, pois "para ser feliz o homem civilizado precisa calcular, e uma aritmética, por mais grosseira e manca que seja lhe é indispensável". Já o índio bravo, "sem bens e sem dinheiro, nada tem que calcular, e todas as idéias abstratas de quantidade e número, sem as quais a razão do homem pouco difere do instinto dos brutos, lhe são desconhecidas". Aqui está a diferença entre as duas civilizações, ou entre a civilização e a barbárie.

Ressaltam no Projeto conceitos que iriam marcar o nascimento do mundo contemporâneo, como os de Nação (nos sentidos político e antropológico), contrato (traço da sociedade capitalista), governos regulares (característica da democracia moderna).

Nesta teoria da cultura de Bonifácio abriga-se uma teoria do Estado. É a necessidade provocada pelo elemento externo -no caso, a colonização - que provoca a definição da nova ordem. Agora, criticados e justificados os dois lados (o indígena e o nacional brasileiro em formação), somente um "governo regular" pode encaminhar a história. Não se deve concluir, diz ele, que seja impossível converter estes bárbaros em homens civilizados, pois, como advertia, "mudadas as circunstâncias, mudam-se os costumes". Mais, indicava a existência de "diferentes raças de índios" vivendo em diferentes níveis, algumas delas deixadas a sí próprias, sem comunicação. Algumas delas, a exemplo de nações civilizadas, já tendo realizado "alguns progressos sociais", como os tupiniquins e potiguares de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, grandes lavradores, e os Carijós da lagoa dos Patos, que já tinham casas bem cobertas e defendidas do frio. E, além de tudo, já não comiam carne humana…

José Bonifácio mostra o equívoco dos jesuítas em relação aos indígenas, em suas missões no Paraguai e no Brasil. E mais teriam feito, ironiza ele, "se o seu sistema não fora de os separar da comunicação dos brancos", e de os governar por uma "teocracia absurda e interessada". Mas, citando Nóbrega, por sua vez citado por Vieira, mostra a facilidade de, com evangelho numa mão e com presentes, música, "paciência e bom modo" na outra, tudo deles se conseguia. E conclui, numa tese que o situa ao lado de Rousseau:

-"Com efeito, o homem primitivo não é bom, nem é mau naturalmente, é um mero autômato, cujas molas podem ser postas em ação pelo exemplo, educação e benefícios".

E mais uma vez o cientista ilustrado fala:
-"Newton, se nascera entre os Guarani, seria mais um bípede , que pisara a superfície da Terra; mas um guarani criado por Newton talvez ocupasse o seu lugar". Dessa forma, Bonifácio demonstra os equívocos dos brancos sobre a questão.

Baseando-se em cálculos do padre Vieira, denuncia que somente no século XVII, num curto período de trinta anos, foram mortos mais de dois milhões de índios. "Faz horror refletir sobre a rápida despovoação destes miseráveis depois que chegamos ao Brasil". E conclui que, apesar de várias legislações sobre as liberdades dos índios, os colonos sempre os maltrataram, escravizando-os e até os vendendo para mercados estrangeiros. Pior, "num século tão alumiado como o nosso", a corte do Brasil ainda fez guerra aos botocudos e puris no Norte, e aos bugres de Guarapuava, "convertidos outra vez de prisioneiros de guerra em miseráveis escravos". Bonifácio, relembrando a instituição do Diretório, criado por D. José em 1755, que representou uma melhoria para o gentio, mas que ainda o mantinha em situação de "menoridade, obediência fradesca, ignorância e vileza", perguntava : "Onde estão as escolas que ordenou em cada povoação? Em síntese, finalizando a exposição de motivos, lembra que os índios deviam gozar dos "privilégios da raça européia".

Por que a civilização é tão desejada, e não a guerra dura aos indígenas? Na etapa histórica em que se achava o Brasil e a política européia, adverte Bonifácio, a civilização dos índios era de sumo interesse. Com sua participação, formar-se-íam aldeias, aumentaria a agricultura com gêneros de primeira necessidade, cresceria a criação de gado, se equilibraria o cultivo e fabrico de açúcar.

As 44 medidas propostas para a "pronta e sucessiva" civilização dos índios foram apresentadas numa ordem lógica, reveladora do racionalismo na consciência histórica de Bonifácio. Dentre tais medidas, destaca-se desde logo a primeira, em que defende a necessidade de reconhecimento dos índios como os legítimos senhores das terras "que ainda lhes restam" ("pois Deus lhas deu"). Deve-se comprá-las, como se pratica nos Estados Unidos, e não esbulhá-los pela força. Propõe, assim, uma mudança de atitude radical. Vamos aceitar "o sofrimento da nossa parte", como cristãos, "pois fomos usurpadores; praticarmos comércio com eles, ainda que seja com perda de nossa parte". Da sua, virão gêneros de seus matos, e da nossa, quinquilharias de ferro e latão, facas, machados, tesouras, anzóis, pregos, açúcar, mantas, tabaco, cães de caça etc". Em suma, que se estabeleça um "comércio recíproco entre eles e nós", para que comecem também a conhecer "o meu e o teu".

O deputado propõe ainda mudança no velho conceito de bandeira: as bandeiras, que saem "para buscar índios bravos dos matos e campos para serem aldeados", deverão ser compostas de "homens escolhidos e honrados"; e que se construam aldeias exemplares, com sertanistas e um missionário. Que os missionários se concentrem na mocidade, não forçando a mudança dos velhos e adultos; para tanto, que procurem instruir os jovens na "moral de Jesus Cristo, na língua portuguesa, em ler, escrever e contar, vestindo-os e sustendo-os". Aos adultos, "antes dos dogmas e mistérios da religião", que se ensinem os princípios mais simples da moral cristã, partindo-se sempre do "princípio incontestável que se deve permitir o que não se pode evitar". E que, antes de se trazerem os índios dos matos, devem ser tomadas providências para esse delicado processo de aculturação (ranchos, alimentação, educação etc), sugerindo ainda que fossem recebidos com festas e aparato nas novas aldeias, "para que formem grande idéia de nosso poder".

As funções aparatosas da Igreja deveriam ser substituídas por músicas de "boas vozes e jogos ginásticos", levantando-se, nas aldeias centrais, escolas práticas de artes e ofícios não só para os índios, como para os brancos e mestiços das povoações vizinhas. E que ficassem, no início, longe de nossas vilas, "para que não lhes inoculemos logo todos os nossos vícios e moléstias". José Bonifácio propunha ainda a criação de uma série de funções e empregos para cada tipo de nação indígena, defendendo a introdução do uso do arado e outros instrumentos, para que os índios "se não julguem aviltados e igualados aos negros, puxando pela enxada". Prevenindo a fome, orientava os missionários no sentido de controlarem a subsistência, armazenando nos anos férteis reservas de farinha, milho e feijão, estabelecendo que, em cada aldeia, se criasse uma caixa pia de economia. Propunha ainda várias medidas concretas, como o fornecimento de instrumentos de produção, indicando tarefas, funções, gêneros a serem cultivados, que, além dos comestíveis de primeira necessidade, poderiam servir ao comércio, como o algodão, tabaco, café, linho, cânhamo etc. e a criação de gado vacum, cavalar etc, com melhor aproveitamento dos subprodutos. Sugeria que o missionário desse seu exemplo pessoal, mostrando, inclusive, que tudo pode ser vendido para fora.

Do Contrato de Trabalho

Quanto ao comércio e ao trabalho, seu projeto se completa ao definir dias e lugares certos e fiscalizados para compras e vendas entre índios e brancos, como mercados e feiras. Os contratos de trabalho -note-se- seriam por escrito ("tantos dias de trabalho por certo jornal"), de preferência por tempo limitado. Aqui, a proposta de Bonifácio é bem completa, pois chega a definir as tarefas de que os párocos deveriam se incumbir (preparar listas nominais, por famílias e idades, de todos os índios estabelecidos, da qualidade das terras e obras de indústria fabril de cada família etc).

Quanto à administração geral, um sistema completo de tribunais cuidaria do governo de todas as missões e aldeias da província, pagos pela Caixa geral do produto das vendas das terras vagas. Tais tribunais cuidariam da proteção dos índios de "todas as exações das justiças territoriais e capitães-mores" e da introdução, nas aldeias já civilizadas, de "brancos e mulatos morigerados para misturar as raças", fazendo deles "um só corpo da nação" instruída, empreendedora. E as aldeias se converteriam em vilas, como ordenava a lei pombalina de 1755.

Bonifácio conclui propondo que os rapazes mais talentosos e instruídos viessem a freqüentar as aulas de latim e outras do ginásio de ciências úteis, como pensionários do Estado. Os de melhor aproveitamento e comportamento seriam escolhidos para postos de direção e povoamento, favorecendo "em iguais circunstâncias os de origem indiana, para se acabarem de vez preocupações anti-sociais e injustas", o mesmo no tocante à carreira eclesiástica. Finalmente, deixa claro que modificações ou ampliações do regimento geral são atribuições do Poder Legislativo. E, no caso dos índios, urgentes.

O deputado Bonifácio termina dizendo que esses são os meios que encontra para cuidar da "prosperidade futura dos miseráveis índios, para que tanto devemos concorrer, até por utilidade nossa, como cidadãos e como cristãos". São "toscos e rápidos apontamentos" (!) que poderão ser "aproveitados, corrigidos e emendados pela sabedoria da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa".

Contra a Escravatura

O segundo documento mais importante de José Bonifácio se refere à escravidão de negros no Brasil. Questão basilar, delicada, controversa. Dividiu-a em duas partes: abre com uma introdução geral, seguida de 37 artigos, nos quais indica desde prazo para o fim do comércio de africanos escravos e mecanismos para a abolição gradual da escravidão, até detalhes da reorganização da vida social, jurídica, econômica e familiar dos libertos. Na introdução deste projeto o leitor poderá encontrar o melhor de suas idéias sociais e políticas, e por esse motivo lhe daremos destaque.

Já na introdução de sua "Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império", o deputado, qualificando-se como "cidadão livre e deputado da Nação", afirma serem os temas da escravidão e do indígena os mais importantes, além do da própria Constituição. E adverte que, resolvida a questão dos índios, anteriormente apresentada à Constituinte, "com o andar do tempo" serão inúteis os escravos. Ligava, desse modo, um projeto ao outro. Fazia notar que, nesse trabalho, aproveitou-se de legislação dos dinamarqueses e espanhóis, e "mui principalmente da legislação de Moisés, que foi o único, entre os antigos, que se condoeu da sorte miserável dos escravos".

O Patriarca apresentara, anteriormente, projeto de lei regulamentando o comércio de escravos, e com isso já trombara com interesses poderosos. Agora, aprofundava a discussão ao propor a abolição do tráfico, a melhoria de vida dos cativos, o caminho para "a sua progressiva emancipação". Abriu a argumentação indignado com o fato de sermos "a única nação de sangue europeu que ainda comercia clara e publicamente em escravos africanos", ressaltando o papel dos cristãos e filantropos que, na Inglaterra (seu modelo preferido), iniciaram o processo de abolição em suas colônias. E que, nada obstante, não se arruinaram as colônias, nem o império inglês.

Conclamando seus concidadãos "brasileiros" a adotarem a causa da abolição, propõe os argumentos da "razão, e da religião cristã, da honra e do brio nacional". E aqui se localizam os valores que embasam e justificam sua tese independentista e abolicionista, bastante avançada para o Brasil senzaleiro, numa conjunção de linhas ideológicas que desenham -pela vez primeira num ambiente institucionalizado- o espaço nacional com homens livres. Nesse sentido, está à frente das lideranças independentistas da América do Norte, inclusive de Thomas Jefferson. Entende-se, também, a partir dessas posições radicais, porque seria, poucos meses depois, exilado, com perseguição e risco de morte em alto-mar.

Autodefine-se ele como "cristão e filantropo", e pede o auxílio de Deus, que o "anime para ousar levantar minha fraca voz no meio desta augusta Assembléia". Para tanto, Bonifácio recorre a uma série de hábeis argumentos, começando por assustar as elites: deve-se acabar com o "país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos", chegando a mencionar num dos artigos a revolução de escravos de São Domingos (hoje Haiti), em 1791. As elites não devem ser apenas justas, como também penitentes. Dar mostras de arrependimento, pois "fomos contra a religião que diz 'não façamos aos outros o que queremos que não nos façam a nós' (em sua formulação meio arrevesada...). Hábil, desfia uma série de mazelas que acompanham o escravismo: incêndios, roubos, guerras, "que fomentamos entre os selvagens da África". Que se acabem com essas mortes e martírios sem conta, flagelos em "nosso próprio território".

- "É tempo, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro; é tempo também que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, responsáveis e felizes. É da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil" (grifo nosso).

Aqui reside a tese principal de Bonifácio, enunciada no mesmo tom da Convenção Nacional durante o período jacobino da Revolução Francesa . A Nação requer um povo, e que seja, dizia ele, o resultado de amálgama (termo que retira da química, que estuda amálgamas, ou não, de metais diversos) de elementos que componham "um todo homogêneo e compacto, que não se esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política". Incita os deputados, comparando seu papel de químicos que serão agentes dessa "tão grande e difícil manipulação", e faz o julgamento duro da nação portuguesa, "de que fazíamos outrora parte". Segundo pensa, "nenhuma talvez pecou mais contra a humanidade".

Aí está sua ruptura. Esse "outrora" joga para o passado um contencioso de erros, uma política desumana, a barbárie. Bonifácio faz história, mas também julga a História com impiedade:

-"Foram os portugueses os primeiros que, desde os tempos do infante D. Henrique, fizeram um ramo do comércio legal de prear homens livres, e vendê-los como escravos nos mercados europeus e americanos. Ainda hoje perto de 40.000 criaturas humanas são arrancadas da África, privadas de seus lares, de seus pais, filhos e irmãos, transportados às nossas regiões, sem a menor esperança de respirarem outra vez os pátrios ares, e destinadas a trabalhar toda vida debaixo do açoite cruel de seus senhores, elas, seus filhos, e os filhos de seus filhos para todo o sempre!".

Ao longo da introdução aos pontos que irá propor para a feitura da lei, revela-se a composição de sua ideologia monarquista liberal-constitucional, fundada em uma impressionantemente sólida visão do direito público, do direito civil e da História em geral. Afinal, era leitor de Aristóteles, Sêneca, Cícero, Plutarco, Tácito, Virgílio, Tito Lívio, Bacon, Leibniz, Bayle, Montesquieu, Fénelon, Hume, Gibbon, Herder, Buffon (sobretudo), Meister, Voltaire dentre outros clássicos. Além de Camões e Vieira.

Sua contemporaneidade está em não aceitar "a farragem das chamadas leis romanas", o "bárbaro direito público das antigas nações", mostrando que "os negros são homens como nós". Mais, lembra ele que os escravos de então eram da mesma cor e origem dos senhores "e igualmente tinham a mesma, ou quase igual, civilização, que a de seus amos, sua indústria, bom comportamento, e talentos [que] os habilitavam facilmente a merecer o amor de seus senhores, e a consideração de outros homens". Critica os "senhores de negros", para ele uma "classe", mostrando, hábil, que a escravidão é anti-econômica. Estranha o fato de o habitante livre do Brasil, surdo às vozes da justiça e aos sentimentos do evangelho, ser cego aos seus "próprios interesses pecuniários, e à felicidade doméstica da família". Tocava, assim, dois pilares da ordem social: a economia e a família. Para desenhar uma sociedade civil sem escravatura, com poucos e necessários criados, sem a prostituição fácil das escravas, e outros males da sociedade escravista e do negócio (imensos cabedais saindo cada ano para a África), onde de fato poucos (dentre os muitos que morrem e adoecem ou se inutilizam) trabalham. Que educação podem ter as famílias com esses "infelizes, sem honra, nem religião?"

-"Tudo se compensa nesta vida; nós tiranizamos os escravos, e os reduzimos a brutos animais, e eles nos inoculam toda a sua imoralidade, e todos os seus vícios".

Defendendo a moralidade e a justiça social da sociedade, que se fundam, em parte, nas suas instituições religiosas e políticas, e em parte na "filosofia doméstica de cada família", Bonifácio critica "nossa religião", "pela maior parte um sistema de superstições e abusos anti-sociais". E, leitor de Voltaire, ataca "nosso clero, em muita parte ignorante e corrompido, [pois] é o primeiro que se serve de escravos", para acumular, enriquecer, comerciar, plantar e formar muitas vezes com as "desgraçadas escravas um harém turco". Denuncia os pseudo-estadistas, os "nossos compradores e vendedores de carne humana", venais "que só empunham a vara da justiça para oprimir desgraçados", ficando a ordem de valores "de todo invertida no Brasil", dominando no cenário o luxo e a corrupção, que nasceu entre nós antes da civilização e da indústria. E qual a causa dos males? A escravidão... E rebate o antigo argumento de que ela é necessária porque a gente do Brasil "é frouxa e preguiçosa". Mentem, diz, e para demonstrá-lo, recorre ao exemplo de São Paulo antes da criação dos engenhos de açúcar, que tinha poucos escravos, e crescia em povoação e agricultura, na base do milho, feijão, farinha, arroz, toucinhos, carnes de porco etc.. E calcula matematicamente que aqui se produzia cinco vezes mais milho que em Portugal, "estando as horas de trabalho necessário da lavoura na razão inversa do produto da mesma".

Para reverter esse quadro, propugna a introdução de novas técnicas européias, decerto com poucos braços, a favor "dos arados e outros instrumentos rústicos" e, com essas práticas, o terreno, quanto mais trabalhado, mais fértil ficará". Em síntese:

-"A natureza próvida, e sábia em qualquer parte do globo, dá os meios precisos aos fins da sociedade civil, e nenhum país necessita de braços estranhos e forçados para ser rico e cultivado" (grifos meus).

Ademais, notava que a escravidão africana, além de não aumentar a população (dadas as mortes etc, não se pagando sequer o juro do dinheiro empregado), obstava a nossa indústria. Mais: o escravismo dissolve a utilidade da presença de "estrangeiros pobres" que para cá imigram, pois logo adotam dois ou três escravos. "Causa raiva", transborda o deputado modernizador, ver que a "abundância extrema de escravos dispensa as máquinas nas povoações grandes". E passa a se dirigir esperta e diretamente aos "possuidores de grande escravatura", achando que não sabem que "a proibição do tráfico de carne humana os fará mais ricos". Delineia então seu ideal de sociedade, mostrando que nela "seus escravos atuais virão a ter então mais valor", com casamentos e outras iniciativas. Os libertos, ou forros, para "ganharem a vida aforarão pequenas porções de terras descobertas ou taperas, que nada valem". E mais: "os bens rurais serão estáveis, e a renda da terra não se confundirá com a do trabalho e indústria individual". Clareza e modernidade maiores, impossível.

Essas considerações antecedem os artigos de seu projeto de lei, e se baseiam no direito, nas leis do evangelho e na "sã política", ancoram-se num moderno conceito de sociedade, base da sociedade civil que tem por fundamento "primeiro a justiça e por fim principal a felicidade dos homens".

Bonifácio atinge o ponto fulcral que organiza e justifica todo o seu projeto, atualizando o conceito de propriedade, afastando-o da ideologia colonialista-escravista:

"Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais, e se tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é pois o direito de propriedade, que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objeto de propriedade".

Pragmático, antes de apresentar uma série de medidas para a abolição gradual, o deputado enfatiza:

"Torno a dizer que não desejo ver abolida de repente a escravidão; tal acontecimento traria consigo grandes males. Para emancipar escravos sem prejuízo da sociedade, cumpre fazê-los primeiramente dignos da liberdade: cumpre que sejamos forçados pela razão e pela lei a convertê-los gradualmente de vis escravos em homens livres e ativos".

Com o andar do tempo, segundo pensava, seriam postos em livre circulação cabedais mortos, que não eram absorvidos com a adoção desse sistema, livrando as famílias do mau exemplo e da tirania, poupando o Estado de seus inimigos, ou seja, dessa gente que "hoje não tem pátria, e que podem a vir a ser nossos irmãos e nossos compatriotas".

Fazendo um apelo a uma inspiração profunda na religião de Cristo, "e não em momices e superstições", propõe que seja dada aos escravos toda a civilização de que são capazes no seu desgraçado estado, "despojando-os o menos que pudermos da dignidade de homens e cidadãos".

Nessa perspectiva, cidadania, pátria, propriedade, fraternidade, liberdade, imigração, miscigenação delineariam os contornos da nova idéia de Estado-Nação independente, sustentada por uma sólida "sociedade civil".

Que se deixasse o passado para trás, o que não aconteceu... Pois os interesses dos comerciantes negreiros junto à Coroa, associados aos interesses de grandes proprietários de terras que ainda se utilizavam o trabalho escravo, e que começavam a ver renascer sua força com o crescimento da economia cafeeira, conseguiram alijar Bonifácio da cena histórica brasileira. Suas idéias, porém, permanecem vivas, atuais, oprtunas ...

Originalmente, este estudo foi publicado em sua forma integral, em Introdução ao Brasil, Um
Banquete no Trópico
, Lourenço Dantas Mota (org.), Ed. Senac, 1999, Vol. I


Carlos Guilherme Mota, historiador, Professor Titular de História FFLCHUSP e de História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie, é Professor Honorário do Instituto de Estudos Avançados da USP e pesquisador da Escola de Direito GV.

2 comentários:

Anônimo disse...

E, para muitos, trata-se "apenas" ou "pura e simplesmente" do Patriarca da Independência. Pensamento fácil... tradicionalismo incoerente. José Bonifácio tinha um poder intelectual comparável (não "igualável"), no que tange ao Brasil, a Rui Barbosa e a Pontes de Miranda. E há quem diga que os brasileiros não têm heróis. Sim, quem o diz jamais passou por estudos sérios de História. O homem não foi "santo", longe disso. O que se constata é que a mediocridade vivia apavorada por sua existência, por sua proximidade. Ingenieros escreveu sobre o tema. Assim como a crítica negativa falaciosa, as apologias romanescas devem ser repudiadas. Basta a verdade possível.

Mauro Pinto.

Anônimo disse...

Mauro (crica) Pinto da terra de José Bonifácio????
mande noticias fkaupa@hotmail.com